Aterro/Parque do Flamengo – Um Central Park tropical II

Um Central Park tropical II – Lota e sua equipe tentam o inimaginável: planejar*

Lota de Macedo Soares não tinha diploma, mas reuniu uma comissão de colaboradores diplomados para ninguém botar defeito. A adesão dos convocados não foi de pronto. Todos tinham, mesmo que vaga, a dimensão da complexidade do empreendimento.

O sonho de Lota era de grandes proporções físicas e implicava esforços materiais e intelectuais de igual monta, além de ter de enfrentar a resistência compacta e obstinada daqueles que ela passou a denominar de “sursânicos”, os técnicos da Sursan que plantavam uma pedra diante de cada passo que ela ameaçava dar.

Quando se fala na construção do Aterro do Flamengo, o nome mais comumente lembrado é o Affonso Eduardo Reidy. Sim, Reidy fez verdadeiramente parte da equipe pilotada por Lota, que o convocou como urbanista, não só por sua expertise no métier, mas também por sua experiência de trinta anos como funcionário da Prefeitura do Rio.

Roberto Burle Marx, grande amigo de Lota, foi indicado para se encarregar do paisagismo, Alexandre Wollner da programação visual, e Jorge Moreira e Sérgio Bernardes da arquitetura.

Reidy e Sérgio Moreira relutaram em abraçar o projeto e só o fizeram em razão da amizade que nutriam por Lota.

A batalha de Lota e sua comissão constitui um capítulo importante da História da Mentalidade Administrativa no Brasil, que ainda está para ser formalmente escrita, mas que reúne exemplos suficientes para constituir uma enciclopédia.

Se não vejamos: após analisarem a viabilidade de conclusão do projeto em quatro anos, Lota e sua comissão concluíram que ela seria possível, mas muito trabalhosa.

É o que se pode constatar num trecho de seu relato sobre as primeiras pedras no caminho:

“(…) empacamos no problema da área usável para os jardins. Pensamos em duas pistas para carros. Mas a Sursan defende com unhas e dentes que o Aterro seja ocupado pro quatro pistas. (…)

Desde 1954 que a Sursan deveria ter mandado fazer o estudo da orla do mar. Por que não mandou até hoje? Mistério. Diz a Sursan: Vocês façam toda a planta do Aterro, com praias, restaurantes à beira-mar, etc. e aí mandaremos fazer o estudo. Bolas isso é querer que se façam duas plantas, já que o estudo hidráulico é que dirá se a praia que nós vamos indicar no projeto será ou não naturalmente formada pelo mar, ou se será artificialmente ajudada. A cada terça-feira surge uma informação diferente.”

Sucederam-se muitas terças-feiras, até que Lota chegou à conclusão que, para manter as rédeas nas mãos, teria de transformar a Comissão em Grupo de Trabalho ao qual ficaria atribuída a tarefa de tomar as decisões relativas à parte aterrada e à orla marítima. À Sursan caberia apenas executar o determinado pelo Grupo.

O Grupo foi criado, por meio do Decreto 607, publicado no Diário Oficial, em 04/10/1961, que incluía todas as prerrogativas estabelecidas por Lota.Mesmo assim, quinze dias depois, “O Globo” publicava uma declaração de Gilberto Morand Paixão, engenheiro-chefe do 12º distrito de obras da Sursan, em que este tornava claro o nebuloso: dizia que a destinação das áreas do Aterro ainda era indefinida e o que de certo havia era a construção de quatro pistas para veículos…

Indignada, Lota apelou para o vice-governador e, finalmente, conseguiu reverter o processo, fazendo com que se aprovassem as duas pistas, e não as quatro.

A essa altura, sua vida já estava tragada pelo inferno kafkiano dos jogos políticos e das intrigas de gabinete, que ela absolutamente não dominava. Em prol de seu sonho disparava cartas em todas as direções batendo-se, inclusive por causas não diretamente relacionadas à construção do Aterro.

Assim, não deixou de torpedear Carlos Lacerda contra construção de um hotel internacional no morro do Pasmado. Como bem salienta Carmem L. Oliveira, o governador conhecia claramente como Lota pensava os elementos da paisagem como patrimônio dos cidadãos.

Mas, por outro lado, um investimento internacional significava a entrada de milhões dólares para o Estado. (os mesmos argumentos de hoje em dia, e sempre…).

Ao longo da correspondência entre Lota e seu amigo agora governador, assistem-se os embates entre a Razão Prática e a Razão Utópica. No caso da construção do hotel no morro do Pasmado, Lota fala de barbarismo, estupidez e crime e lembra ao amigo “que não era democrático destruir o patrimônio de todos para aliviar a sorte de alguns.”

E em defesa do conjunto do Hotel Glória, vituperou: “Não cometa a estupidez de entregar ao Hotel Glória os estacionamentos previstos para servirem de jardim!”  (Será que esta ameaça se concretizou 50 anos depois???)

Por vezes, o embate era aquele de racionalidades diferentes, como foi o caso da discussão entre os dois, presenciada por um estupefato ajudante de ordens, sobre o melhor e mais econômico revestimento para os jardins do Aterro.

Lacerda era a favor do saibro, que, do ponto de vista de Lota, seria destruído na primeira chuva. Para ela, a grama era mais barata e durável.

Diante da teimosia do governador e amigo, Lota não teve papas na língua:

– Carlos, deixa de ser idiota, Carlos!

*Todas as citações entre parênteses constantes deste texto foram extraídas de: Oliveira, Carmen L. “Flores raras e banalíssimas: a história de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop”. Rio de Janeiro, Rocco 1995.

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