Ato do Governo Federal complica a vida urbanística dos 5.570 municípios brasileiros

O Governo Federal acabou de publicar a Resolução CGSIM nº 64 de 15/12/2020 que afetará, e confundirá, o licenciamento de obras nos 5.570 municípios brasileiros. Trata-se de um ato administrativo normativo gestado e aprovado no âmbito de um comitê, criado dentro da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital/Secretaria de Governo Digital, que por sua vez é subordinada ao Ministério da Economia, e que faz parte da estrutura do Poder Executivo; leia-se Presidência da República.

A longa frase acima é posta apenas para localizar este comitê que, perdido dentre a estrutura de uma secretaria de um ministério, ousou fazer uma resolução que pode bagunçar, em todo o território nacional, a ordem urbanística brasileira de licenciamento das edificações .

Uma enorme pretensão imperial, pois até que os 5.570 municípios, perplexos com a publicação, obtenham, seja do Parlamento, através de uma sustação de ato normativo (artigo 49,V da Constituição Federal *), seja do Judiciário, através de arguição de inconstitucionalidade, a enorme confusão já estará formada.

Vamos ver o motivo:

A dita Resolução 64 do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – CGSIM (o nome do comitê de simplificação bem que poderia começar por simplificar o próprio nome!) tem como finalidade liberar determinadas tipologias de obras privadas do licenciamento urbanístico municipal ou facilitar-lhe o licenciamento. Para tanto, lista e classifica o que o dito comitê, lá em Brasília, entendeu como obras de “baixo risco” e que, por este motivo, poderiam ser realizadas – do Oiapoque ao Chuí – sem licença das 5.570 Prefeituras municipais.

O comitê é engenhoso em sua manobra de comando. Diz que vale a classificação, e a liberação dele, até que cada um dos 5.570 municípios faça uma regra municipal que desdiga, no âmbito de seus respectivos territórios, a aplicação da resolução do comitê! (Artigo 2º, §1º, II da Resolução).

Bem, se a resolução começar a entrar em vigor em março de 2021, caso os Municípios brasileiros, com os poucos problemas que os asseclas do Governo Federal devem achar que eles têm, não tenham começado a listar, aprovar e publicar os casos que não aplicarão a resolução “imperial”, os seus munícipes poderão pensar, com razão, que se o governo federal disse que liberou geral certas obras, é porque está liberado. Afinal, o comando veio “de cima”, supostamente…

A resolução 64 do dito Comitê é confusa, difícil de ler, mas, sobretudo, insidiosa. Isto porque ela, engenhosamente, diz que se baseia na Lei nº 13.874 de 20 de setembro de 2019, que tratou dos “Direitos de Liberdade Econômica”. Nesta lei, o governo federal pretendeu fazer a apologia da “direito à liberdade econômica”, como se este fosse o “direito dos direitos”; ou seja, aquele direito que pela sua importância superior, fosse o que estivesse acima de todos os demais direitos do sistema jurídico constitucional! E mais; como se o direito à liberdade econômica por si mesmo, também não estivesse submetido à regulação, tendo em vista outros interesses sociais.

A Lei 13.874, que dispõe sobre a “Declaração dos Diretos de Liberdade Econômica”, é em si mesma uma regulação da liberdade. E ela é editada não em virtude de a Constituição garantir a plena e irrestrita liberdade econômica; ao contrário, a Constituição garante a liberdade econômica quando ela também atenda aos demais interesses públicos listados nos incisos do artigo 170 da Constituição Federal*, bem como aos outros interesses públicos e privados, igualmente previstos.

Portanto, o “direito à liberdade econômica” não é o direito dos direitos, mas há de estar necessariamente coordenado a todas as demais garantias e direitos constitucionais.

Ora, ao lado do interesse de legislar sobre “direito econômico”, a Constituição Federal dispôs, em seu artigo 24, no mesmo inciso I*, o interesse público do Direito Urbanístico. E esta mesma Constituição dispôs sobre o conteúdo do interesse público urbanístico em seu artigo 182 caput. Diz a Constituição que as regras de direito urbanístico têm como objetivo “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes“.

Portanto, a licença urbanística, que é regida só e tão somente pelas regras de direito urbanístico e sobretudo pelos Planos Diretores Municipais, só existe para controlar o que esta legislação entende ser o adequado para atender ao objetivo constitucional específico do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da garantia do bem estar dos habitantes. Este é o objetivo constitucional máximo do licenciamento urbanístico, por mais que a turma do comitê planaltino ache, em sua visão, que determinados licenciamentos estejam travando demais a economia.

E ainda; parece que o comitê esqueceu de ler o artigo 30, VIII da Constituição Federal, que ao distribuir as competências federativas atribuiu exclusivamente aos Municípios a execução (e, portanto, a regulação administrativa) do licenciamento das obras em seu território, ao dispor que a ele, Município, caberia “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. (grifos nossos)

Muito haveria ainda a se comentar sobre o engenhoso, complicado, burocrático e insidioso texto da resolução, mas esperamos que até março ele já tenha sido derrubado, seja pelo Parlamento, seja pela Justiça. Se até lá isto não acontecer, vamos aqui comentando, preocupados com o fato de os asseclas do Governo Federal não conseguirem fazer seu dever de casa no âmbito da sua competência, como a reforma administrativa e a reforma tributária e, mesmo assim, pretendendo ser sábios o bastante para se intrometerem na competência de outros entes da Federação Brasileira.

Artigo 49, V da CF: É da competência exclusiva do Congresso Nacional: (…) V – sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa

Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – soberania nacional;

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV – livre concorrência;

V – defesa do consumidor;

VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII – busca do pleno emprego;

IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Artigo 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico

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10 Resultados

  1. Branca Ribeiro Figueira disse:

    Obrigada Sonia Rabelo pelo seu texto informativo e esclarecedor. Agradeço também ao comentário do meu colega e amigo Lincoln Botelho complementando a matéria. Vou me permitir um comentário político pois estou também horrorizada com tal “clorofila urbanistica” . Esse desgoverno foi eleito pelo golpe de 2016 quando a Operação Lava Jato estava a todo vapor destruindo a engenharia nacional e garantindo esse mercado para as construtoras americanas e estrangeiras em geral. É claro que o passo seguinte seria abocanhar uma fatia desse mercado da construção civil para seus aliados políticos daí a criação dos “despachantes federais”, e penso não é à toa o desmonte do IPHAN e a permissão legal da venda de até 25% das terras nacionais/municipais. Todo poder ao ente federal!

  2. Lincoln Botelho da Cunha disse:

    Ótimos apontamentos sobre as aberrações dessa verdadeira “cloroquina” urbanística. Medidas arrogantes, exorbitantes e violentas contra o sedimentado “interesse peculiar dos municípios”, contra a cultura administrativa local, Embuste para retirar do poder local a gestão dos negócios jurídicos submetidos ao poder de polícia das construções. Reconhecendo a peculiaridade de cada porção do território nacional, politicamente recortado pelas fronteiras de cada um dos 5570 municípios, a Constituição estabeleceu expressamente, a competência de cada município promover o seu ordenamento territorial através do controle do USO, PARCELAMENTO e OCUPAÇÃO do solo urbano. Portanto, Uso, Parcelamento e Ocupação são as variáveis de controle expressamente estabelecida, constitucionalmente, para o planejamento territorial. E são as variáveis fundamentais prescritas na literatura urbanística. A clivagem pelas variáveis referentes a “RISCO”, conforme estabelece a medida “cloroquínica”, não logra a possibilidade mínima de afetar o planejamento urbano – o ordenamento territorial. O LICENCIAMETO DE OBRAS é instrumento do Poder de Polícia das Construções/Urbanística. Esse Poder de Polícia é de natureza Administrativa, Preventiva, deve se dar, necessariamente, pelo controle PRÉVIO, CONCOMITANTE e POSTERIOR à atividade edilícia. Não é possível, não é dado ao Ente federativo, se abster de exercer esse poder de polícia e muito menos a delegá-lo a particulares – isso é uma aberração! O que faz a medida urbanística “cloroquínica”? Com a insidiosa argumentação de combater a burocracia local, cria uma burocracia federal com tudo que se combate de exageros numa burocracia. Sob o apanágio mágico da TI, remédio genérico para desqualificar o trabalho criativo (mas, isso é outra história, mesmo sendo a mesma!), pretende “criar um mercado” a que deram um nome que por si só já denuncia a trapalhada: MERCADO DE PROCURADORES DIGITAIS DE INTEGRAÇÃO URBANÍSTICOS DE INTEGRAÇÃO NACIONAL – MURIN – Rigor taxionômico aqui passa longe, né? Mas, o que é isso? Simples! DESPACHANTE FEDERAL. Criaram uma burocracia federal que já vem com a atividade do “zangão” normatizada. Não dá pra considerar minimamente! Grande Mestre Sônia, precisamos da sua liderança para combater essa estultice! Grande abraço, desse que te admira e acompanha.

  3. Elizabeth disse:

    Sonia, só não ficou claro que tipo de obras são essas que o decreto permite sem licenciamento.

    • Sonia Rabello disse:

      Olá Elizabeth. As obras referidas no texto da Resolução são obras civis, especialmente as domésticas, de casas e prédios.

  4. Sonia Rabello disse:

    Caros leitores, obrigada pela leitura do texto. A resolução foi feita de forma engenhosa, como disse. E se ficou difícil de explicar nas 800 palavras é quase impossível resumi-la ainda mais. Mas, dado ao interesse vou tentar fazê-lo: 1) A União tem competência para legislar sobre direito econômico, e o fez pela lei 13.874. 2) Esta lei permite que seja normatizada de forma muito ampla através de normas secundárias, como por decreto e resolução. 3) Mas, a resolução trata direito econômico como abrangente de todo o universo de interesse jurídico, ou seja, todas as atividades podem ser, para eles, direito econômico, e portanto abrangidas por atos regulamentares do governo federal. 4) Meu entendimento é que a Constituição Federal ao dispor, em separado, sobre interesse urbanístico (art.24) e sobre política urbana (art.182) retirou da esfera do direito econômico a matéria de direito urbanístico. 5) A licença de obras decorre das exigências do direito urbanístico, e é por isso que ela existe. 6) Então, a regulamentação do direito econômico está fora do seu alcance, pois os objetivos da legislação urbanística, pelo art.182 da CF não são econômicos, mas de qualidade de vida nas cidades. 7) E além disto, o art.30 VIII inclui na competência exclusiva do Município “promover” (entenda-se executar) o controle do uso do solo. E a licença é a forma de controle deste uso, segundo a legislação do Município. E, cabendo a ele, administrativamente licenciar (atividade administrativa), cabe a ele também a legislação administrativa de organização das formas de licenciamento (quando, se, de que forma, por quanto tempo), variando de município para município. E este é o fundamento de um Estado Federativo.
    Bem, espero ter ajudado
    Abraço, e fico feliz com o interesse na compreensão do direito, pois esta é a intenção deste blog.

  5. Douglas disse:

    Corroboro com o pedido acima , resume isso , e exemplifica .

  6. Rafael Gonzales (prefiro permanecer anônimo) disse:

    Olá!

    Sou um recém formado arquiteto e tive um pouco de dificuldade de entender o seu texto – assim como tive muita dificuldade em entender esta Resolução.

    Li ela antes de chegar aqui, justamente por que senti durante todo o texto que a responsabilidade estava sendo redirecionada através de pomposas cortinas de fumaça da – tão referenciada no texto – liberdade econômica.

    Mas, ao mesmo tempo, sinto que apesar do sentimento de revolta do texto ter ficado claro, eu não estou irritado o bastante com isso. Provavelmente por que não compreendo a extensão do problema devido minha inexperiência e imaturidade legislativa. Se possível, poderia explicar um pouco – mesmo que resumido – de forma mais simples?

    Agradeço muito. E parabéns pelo texto.

    • Lincoln Botelho da Cunha disse:

      Ótimos apontamentos sobre as aberrações dessa verdadeira “cloroquina” urbanística. Medidas arrogantes, exorbitantes e violentas contra o sedimentado “interesse peculiar dos municípios”, contra a cultura administrativa local, Embuste para retirar do poder local a gestão dos negócios jurídicos submetidos ao poder de polícia das construções. Reconhecendo a peculiaridade de cada porção do território nacional, politicamente recortado pelas fronteiras de cada um dos 5570 municípios, a Constituição estabeleceu expressamente, a competência de cada município promover o seu ordenamento territorial através do controle do USO, PARCELAMENTO e OCUPAÇÃO do solo urbano. Portanto, Uso, Parcelamento e Ocupação são as variáveis de controle expressamente estabelecida, constitucionalmente, para o planejamento territorial. E são as variáveis fundamentais prescritas na literatura urbanística. A clivagem pelas variáveis referentes a “RISCO”, conforme estabelece a medida “cloroquínica”, não logra a possibilidade mínima de afetar o planejamento urbano – o ordenamento territorial. O LICENCIAMETO DE OBRAS é instrumento do Poder de Polícia das Construções/Urbanística. Esse Poder de Polícia é de natureza Administrativa, Preventiva, deve se dar, necessariamente, pelo controle PRÉVIO, CONCOMITANTE e POSTERIOR à atividade edilícia. Não é possível, não é dado ao Ente federativo, se abster de exercer esse poder de polícia e muito menos a delegá-lo a particulares – isso é uma aberração! O que faz a medida urbanística “cloroquínica”? Com a insidiosa argumentação de combater a burocracia local, cria uma burocracia federal com tudo que se combate de exageros numa burocracia. Sob o apanágio mágico da TI, remédio genérico para desqualificar o trabalho criativo (mas, isso é outra história, mesmo sendo a mesma!), pretende “criar um mercado” a que deram um nome que por si só já denuncia a trapalhada: MERCADO DE PROCURADORES DIGITAIS DE INTEGRAÇÃO URBANÍSTICOS DE INTEGRAÇÃO NACIONAL – MURIN – Rigor taxionômico aqui passa longe, né? Mas, o que é isso? Simples! DESPACHANTE FEDERAL. Criaram uma burocracia federal que já vem com a atividade do “zangão” normatizada. Não dá pra considerar minimamente! Valeu, Dra. Sônia! indispensável a sua liderança contra essa arbitrariedade!

      • Sonia Rabello disse:

        Muito obrigado pelo seu comentário, que acrescentou muito ao texto. Obrigada também pelo apoio e suas leituras. Continuamos – todos – no mesmo campo desta luta!

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