“Corrida do Rio rumo ao futuro atropela passado escravo” no New York Times
Nesta matéria publicada no “The New York Times”, no último sábado, dia 8, a minha posição sobre a perversidade do plano do Porto “nãoMaravilha” do Rio é mencionada. Até lá, nos EUA, nossa voz e este assunto já chegou!
“Corrida do Rio rumo ao futuro atropela passado escravo” – “Rio’s Race to Future Intersects Slave Past”
(Por Simon Romero para o “The New York Times” – 8 de Março de 2014)
“RIO DE JANEIRO – Vindos da costa angolana, do outro lado do Atlântico, os navios negreiros atracavam no Rio de Janeiro no século 19 num enorme cais de pedra onde deixavam sua carga humana para as “casas de engorda” na Rua do Valongo. Cronistas estrangeiros descreveram a degradação deste mercado de escravos sempre superlotado, incluindo as lojas que vendiam crianças africanas magras e doentes.
Os corpos dos escravos recém-chegados que morriam antes mesmo de iniciada a sua labuta nas minas do Brasil, eram carregados para serem enterrados em valas comuns nas proximidades do cais. Os cadáveres eram deixados ao ar livre para se decomporem em meio a pilhas de lixo. Como se plantassem flores imperiais os escavadores do Cemitério dos Pretos Novos esmagavam os ossos dos mortos, para abrir lugar para “plantarem” milhares de novos cadáveres.
Agora, com equipes de construção civil demolindo enormes áreas do Rio de Janeiro para as obras dos grandes eventos da Copa do Mundo deste ano e dos Jogos Olímpicos de Verão de 2016, descobertas arqueológicas impressionantes estão sendo feitas no entorno dos canteiros de obra, oferecendo uma nova visão sobre a brutalidade que imperava na cidade do Rio no tempo em que ela era o centro nervoso do tráfico transatlântico de escravos.
Mas, apesar disto as empreiteiras avançam pelos arredores do porto de escravos recém descoberto com seus projetos futuristas, como o Museu do Amanhã, que custa cerca de US $ 100 milhões e foi projetado na forma de um peixe pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava.
Esta frenética reforma urbana está desencadeando um debate sobre se o Rio está negligenciando seu passado histórico na corrida consumista para construir o seu futuro.
“Estamos descobrindo sítios arqueológicos de importância mundial e, provavelmente, muito mais extensos do que foi escavado até agora, mas em vez de priorizar essas descobertas nossas autoridades prosseguem com a sua reconstrução grotesca do Rio”, disse Sonia Rabello, uma jurista eminente e ex-vereadora.
A cidade instalou placas indicativas nas ruínas do porto de escravos e um mapa de um circuito da herança africana. Os visitantes podem agora caminhar pelo local onde estava localizado o mercado de escravos. Ainda assim, os estudiosos, ativistas e moradores do porto argumentam que tais ações são muito tímidas em comparação aos projetos urbanísticos de bilhões de dólares que vão tomando conta de todo o espaço.
Além do Museu do Amanhã, criticado por ser um empreendimento de custo muito elevado, as empreiteiras e as autoridades estão tocando ali numa série de outros projetos bombásticos, como um complexo de arranha-céus em homenagem a Donald Trump e um condomínio fechado para a moradia de juízes olímpicos.
Ao mesmo tempo, os descendentes de escravos africanos que vivem como posseiros em prédios decadentes ao redor do porto de escravos, estão se organizando num esforço para obter títulos para suas casas, colocando-se em conflito com a Ordem Franciscana da Igreja Católica, que reivindica a posse das propriedades.
“Sabemos que os nossos direitos”, disse Luiz Torres, 50, um professor de história e líder do movimento dos direitos de propriedade. Com as ruínas do mercado de escravos perto de sua casa, como testamento, ele acrescentou: “Tudo o que aconteceu no Rio foi moldada pelas mãos dos negros.”
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Os estudiosos dizem que a escala do comércio de escravos no Rio de Janeiro foi impressionante. De acordo com o banco de dados do Trans-Atlantic Slave Trade, um projeto da Universidade de Emory, o Brasil recebeu cerca de 4,9 milhões de escravos através do comércio atlântico, enquanto que a América do Norte importou apenas cerca de 389.000 durante o mesmo período.
Acredita-se que o Rio de Janeiro tenha importado mais escravos do que qualquer outra cidade das Américas, superando lugares como Charleston, Carolina do Sul; Kingston, Jamaica e Salvador, Bahia. Ao todo o Rio recebeu mais de 1,8 milhões de escravos africanos, ou 21,5 por cento de todos os escravos que desembarcaram nas Américas, disse Mariana P. Candido, historiadora da Universidade de Kansas.
“Os horrores cometidos aqui são uma mancha na nossa história”, disse Tânia Andrade Lima, arqueóloga chefe das escavações que expuseram o Porto do Valongo, construído logo após o príncipe regente de Portugal, D. João VI, fugir dos exércitos de Napoleão, em 1808, transferindo a sede da seu império de Lisboa para o Rio.
Ativistas dizem que as descobertas arqueológicas mereciam, pelo menos um museu e as escavações deveriam ser muito mais extensas, a exemplo de projetos similares de outros lugares, como o Museu Slavery International, na cidade portuária britânica de Liverpool, onde os navios negreiros eram preparados para as viagens, o Museu Old Slave Mart em Charleston e Castelo de Elmina, um entreposto para o comércio de escravos na costa de Gana.
O Cais do Valongo funcionou até a década de 1840, quando as autoridades resolveram soterrá-lo sob um cais mais elegante concebido para receber a nova imperatriz do Brasil da Europa. As duas construções foram finalmente soterradas, passando a fazer parte de um bairro residencial popular conhecido vulgarmente como “A Pequena África“.
Muitos descendentes de escravos se estabeleceram na área onde o mercado de escravos funcionava e suas línguas africanas eram faladas na região ainda no início do século 20. Apesar do bairro ter conquistado amplo reconhecimento como berço do samba, uma das tradições musicais mais apreciados do Brasil, ele foi por muito tempo negligenciado pelas autoridades.
“Sabemos dos nossos direitos”, disse Luiz Torres, 50, um professor de história e líder do movimento dos direitos de propriedade. Com ruínas do mercado de escravos perto de sua casa, como testamento, ele acrescentou: “Tudo o que aconteceu no Rio foi moldada pelas mãos de negros.”
O Dia da Consciência Negra é comemorado anualmente no Brasil em 20 de novembro, para que se reflita sobre as injustiças da escravidão. Em 2013 Sonia Rabello, observou que o prefeito Eduardo Paes, que está supervisionando a maior reforma da cidade em décadas, diante das pesadas críticas não compareceu à cerimônia no Valongo, onde os moradores começaram uma campanha para que o cais seja reconhecido como um Patrimônio Mundial da Unesco.
Para complicar o debate sobre a forma como o passado histórico do Rio precisa ser tratado no processo desenfreado de reconstrução da cidade, algumas famílias ainda vivem em cima dos sítios arqueológicos, ocasionalmente fazendo escavações por sua própria conta.
“Quando eu vi pela primeira vez os ossos, eu pensei que eram o resultado de um assassinato horrível envolvendo inquilinos anteriores”, disse Ana de la Merced Guimarães, 56, o proprietária de uma pequena empresa de controle de pragas que vive em uma casa velha quando os trabalhadores que realizavam uma reforma no imóvel descobriram os restos de uma vala comum em 1996.
Merced Guimarães descobriu assim que estava vivendo em de um vazadouro de corpos de escravos mortos que foi usado por décadas, até por volta de 1830. As estimativas variam, mas os estudiosos dizem que cerca de 20.000 pessoas foram enterradas nestas sepulturas, incluindo aí muitas crianças.
Merced Guimarães e seu marido optaram então por permanecer em sua propriedade, criando uma modesta organização sem fins lucrativos no local, onde os visitantes podem ver partes da escavação arqueológica. As autoridades têm planos para construir uma via expressa na rua de Merced, o que pode levar a mais descobertas.
“Este era um local de crimes indescritíveis contra a humanidade, mas é também o lugar onde vivemos”, disse Guimarães em sua casa, reclamando que os órgãos públicos têm fornecido pouco apoio a sua organização.
Washington Fajardo, um assessor do prefeito do Rio de Janeiro sobre questões de planejamento urbano, disse que alguns passos importantes foram tomados nos sítios arqueológicos, incluindo a designação do porto de escravos como uma área de proteção ambiental. Ele disse também que existe um plano em estudo para criar um laboratório de arqueologia urbana, onde os visitantes poderão ver resíduos e objetos arqueológicos e acompanhar o trabalho dos arqueólogos que estudam o material dos sítios.
Washington Fajardo também enfatizou que em outro novo empreendimento no porto, o Museu de Arte do Rio, moradores da região representam mais de metade do pessoal contratado.
“Nós gostaríamos de fazer mais”, disse ele, referindo-se ao cemitério de escravos. “É complexo, porque há pessoas que residem sobre os sítios. Se eles querem ficar, temos de respeitar os seus desejos” ‘ “
Ao longo da cidade do Rio, outras descobertas estão sendo feitas. Perto de um projeto de expansão de uma linha de metrô, os pesquisadores descobriram recentemente relíquias pertencentes a Pedro II, último imperador do Brasil, antes de ser derrubado em 1889. Perto do porto de escravos, os arqueólogos encontraram também canhões usados como parte de um sistema de defesa marítima da cidade com quatro séculos de idade.
Mas nenhuma das descobertas foi tão marcante como a do Cais Valongo em 2011 e as escavações anteriores do cemitério em casa de Merced Guimarães. Além das grandes pedras do cais, os arqueólogos encontraram itens que ajudaram a reconstruir o cotidiano dos escravos, incluindo peças de cobre, talismãs e dominós usados como jogos de azar.
Entre o porto de escravos e o cemitério, os visitantes também podem ver a Ladeira do Valongo, onde os depósitos de mercado de escravos do Rio de Janeiro, horrorizavam viajantes estrangeiros. Um visitante, Robert Walsh, clérigo britânico que veio para o Brasil em 1828, escreveu o local e as transações que ali ocorriam.
“Eles são mal tratados pelo comprador que os descreve citando as diferentes partes de seus corpos, exatamente como eu já vi açougueiros descrevendo um bezerro”, disse ele. “Já vi algumas vezes grupos de mulheres bem vestidas comprando escravos aqui, exatamente como havia visto senhoras inglesas se divertindo em nossos bazares.”
O legado de escravidão é evidente em todo o Brasil, onde mais da metade dos seus 200 milhões de pessoas se definem como negros ou pardos, tendo o país mais pessoas de ascendência africana do que qualquer outro país fora da África. No Rio, a grande maioria dos escravos veio do que é hoje Angola, disse Walter Hawthorne, um historiador da Universidade Estadual de Michigan.
“O Rio era uma cidade de forte e vibrante cultura africana”, disse Hawthorne. “As pessoas comiam, se vestiam e tudo o mais, tinham modos e hábitos enfim, em grande medida influenciados por práticas culturais angolanas”
O Brasil aboliu a escravidão em 1888, tornando-se o último país das Américas a fazê-lo. Agora, a abordagem relativamente displicente em relação às presentes descobertas arqueológicas está levantando dúvidas se as autoridades estão mesmo,dispostas a rever esses aspectos da história do Brasil.
“Os arqueólogos estão expondo as bases de nossa sociedade desigual, enquanto nós assistimos a uma tentativa perversa de refazer a cidade em algo semelhante a Miami ou Dubai”, disse Cláudio Lima Castro, um arquiteto e estudioso de planejamento urbano….Estamos perdendo uma oportunidade de nos concentrarmos em detalhes importantes do nosso passado, e talvez até mesmo aprender com ele.”
(Taylor Barnes, contribuiu com esta reportagem.)
Tradução: Blog Spirito Santo
Original em inglês aqui.
Sou professor universitário e pesquisador da escravidão africana no Rio de Janeiro. Em 2001 eu indiquei para a prefeitura do Rio de Janeiro a existência do cais do Valongo. houve algumas tentativas de trabalho – inclusive um decreto – mas nada foi efetivado. Em 2011 o projeto de arqueologia apresentado ao Instituto do Patrimonio Historico e Artistico Nacional (IPHAN) foi de minha autoria. Trabalhei dois anos dando assessoria histórico a equipe de arqueologia da prefeitura. infelizmente a vereadora Sonia Rabelo – muito respeitada e combativa – não tem todos os informes. Existe um projeto já aprovado chamado CIRCUITO TURÍSTICO, HISTÓRICO E ARQUEOLÓGICO DA HERANÇA AFRICANA DA ZONA PORTUÁRIA que vai criar uma serie de medidas para implementar projetos culturais na região, inclusive um MEMORIAL DA DIÁSPORA AFRICANA DO RIO DE JANEIRO. Se voces quiserem eu posso dar mais informações. obrigado
Prezado Carlos Eugenio Soares: muito obrigada pelo seu comentário. De fato, não conheço todas as propostas. Mas, como vc mesmo diz em seu comentário, muita coisa é aprovada (até por Decreto, no papel), mas “nada é efetivado”. Entendi que o projeto aprovado do CIRCUITO, é de 2011, e estamos em 2014! Quem o conhece, e cobra pela sua efetivação? O que aconteceu com as ruínas que estão abaixo do prédio do Banco Central? Se vc puder e quiser esclarecer, terei muito prazer em publicar neste meu blog. Mas, gostaria de fatos, sobretudo… Abraço, SR
Os brasileiros nunca gostaram de história e muito menos de arquitetura ou urbanismo. Nem acho que é questão de “esconder” qualquer coisa, acho que simplesmente não se importam. O que mais vale é o quanto vão desviar, digo… lucrar com as obras.
Exelente artigo, onde, infelizmente fica clara a ídéia de esconder o passado. Para com isso não atrazar as obras, e não possibilitar que reduza a área edificante, ou seja, os lucros!!!!