Direito de Superfície no Rio: nota sobre uma tentativa de imbróglio jurídico
Com que finalidade inimaginável, ou indizível, o Prefeito do Rio aceitou encaminhar à Câmara de Vereadores proposta de projeto de lei (PLC 96/2015), feito sabe-se lá por quem, que pretende regular o instituto do direito de superfície na Cidade, como se fosse um simples instrumento de uso do solo!
Senhor Prefeito, vossa Procuradoria deve tê-lo alertado, imagino, que esta ideia de confundir um direito real como se fosse uma mero recurso urbanístico destinado a negócios e vendas de direitos de construir é mais do que um imbróglio jurídico; é um erro estapafúrdio elementar disfarçado de linguagem pseudo jurídica.
Vejamos, de forma sucinta, os sete primeiros pecados capitais da proposta:
- 1. Direito de Superfície é um direito real, assim classificado no Código Civil, art.1225. II, como qualquer direito real (servidões, usufruto hipoteca, penhor, anticrese, concessão real de uso, direito real de habitação); e como tal, direitos reais só podem ser objeto de legislação federal[1].
- O código civil já dispôs sobre as características do chamado direito de superfície, não restando espaço para o Município fazê-lo, nem mesmo com respeito aos bens públicos municipais, já que se trata de um direito real sobre a propriedade (art. 22, I da CF).
- Conforme disposto no Código Civil (CC), no art.1369 [2] , a forma de uso do direito de superfície decorre do terreno – como diz o nome, da superfície do solo, e está a ela conectada, não podendo haver hipótese, por força do que dispõe o CC de venda de espaço aéreo desconectado do uso do solo.
- Igualmente, e pelo mesmo motivo, não pode haver venda de subsolo desconectada do solo, através de direito de superfície, como pretende a projeto de lei, já que é do solo – objeto do direito de propriedade imobiliária – que decorre o limite do exercício do direito do proprietário de uso do espaço aéreo e do subsolo, limite este vinculado ao uso útil das construções no solo: “útil ao seu exercício” , como diz o art.1129 do Cod.Civil/2002.
- A projeto pretende dispor (art.3º do PLC) sobre o direito de superfície para negócios entre particulares, de forma permitir a venda de espaços aéreos e sub-solos, aparentemente desvinculados do solo, como se fora hipóteses de “Transferência do Direito de Construir”, instrumento este previsto no art.35 do Estatuto da Cidade, mas sem aplicação deste instrumento, embora mencione algumas hipóteses contidas nos incisos I a III do referido art.35.
- O projeto pretende usar o direito de superfície para estabelecer negócios de venda de espaços aéreos sobre bens públicos, e deles desconectados, o que contraria a previsão do instituto no Código Civil, como um direito real sobre a propriedade – dando forma de uso direto, de construir ou plantar, sobre o terreno.
- O projeto pretende usar a figura do direito de superfície para vendas específicas de direitos de uso e ocupação do solo, sem a implantação sistemática, geral e isonômica, na Cidade, do instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir, conforme preconiza do art.28 do Estatuto da Cidade, e a Resolução Recomendada 148 de 2013 do Ministério das Cidades. Ou seja, aplicar a Outorga Onerosa como uma espécie de mais valia, mas sem instituir índice básico e máximos de edificabilidade, destorcendo e confundindo as figuras de instrumentos urbanísticos com direito real sobre propriedade alheia!
O Município pode e deve legislar sobre os recursos de edificabilidade. Legislando sobre uso e ocupação do solo, irá dispor sobre os direitos de construir inerentes ao uso útil da propriedade pelo proprietário e os recursos públicos de construir, como recursos da cidade a serem outorgados onerosamente aos interessados mediante contrapartida.
Esta forma de gerenciar o uso dos recursos públicos de construir, preconizada no art.28 do Estatuto da Cidade quando trata da “Outorga Onerosa do Direito de Construir”, já se encontra regulamentada, como Diretriz urbanística para todas as cidades do país na Resolução Recomendada 148/2013 do Ministério das Cidades.
Pergunta que não quer se calar: por que esta ginástica jurídica ininteligível? O que se pretende esconder nas obscuras entranhas desta invencionice criativa imobiliária, uma aventura jurídica deste “direito municipal real de superfície” que o Prefeito do Rio resolveu encaminhar à Câmara Municipal?
Esperamos – será que podemos ? – que a Câmara de Vereadores não caia nesta esparrela jurídica sob o argumento de que a Cidade precisa aumentar sua arrecadação pública. Se assim fosse, o Executivo e sua base parlamentar não teria acabado, no Plano Diretor (PD) de 2011, com a Outorga Onerosa prevista na legislação urbana da Cidade desde o PD de 1992, com índice básico uniforme para toda a cidade.
Ela, a Outorga Onerosa generalizada para toda a Cidade, é o verdadeiro recurso público de edificabilidade desperdiçado no Rio. Porém, em São Paulo, é a grande conquista do seu novo Plano Diretor de 2014, e fonte significativa de grande arrecadação na maior cidade da América Latina.
Por que será que o chefe do Executivo do Rio não quer olhar para o lado, para nossos vizinhos, e simplesmente cumprir a Recomendação do Ministério das Cidades?
[1] Lembre-se que o ECi, ao também dispor sobre direito de superfície, no seus arts.21 e segs. o fez como legislação federal que é, assim como dispôs sobre usucapião urbano, desapropriação com títulos da dívida pública, direito de preempção.
[2] “art.1369: O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis.” (grifo nosso)
Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão.