Habitação Social e o falso acesso ao direito de moradia pela grilagem de terras públicas de valor ambiental

Chorando sobre o leite derramado. É o que aconteceu nesta semana com o desabamento de prédios irregulares na região da Muzema, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O pior é que mais leite vai derramar e novos prantos virão.

Até quando? Até nós nos convencermos de que o milagre de uma cidade solidária não cai do céu de graça. Há de se “quebrar ovos, para se fazer o omelete”.  Por isso, não se faz acesso à moradia às custas do meio ambiente e da qualidade de vida nas cidades.

Há uma verdade inescapável na queda de prédios irregulares na Muzema. Aqueles que compraram os imóveis irregulares estavam ali porque era esta a opção viável que se apresentava para morar em algum lugar. O incipiente mercado formal da habitação social no Rio parece que se esgotou com a paralisação do projeto do “Minha Casa, Minha Vida”.  Não há nem mais esta opção, que era ruim e longe do mercado de trabalho, cujo acesso era só com o transporte público ruim e caro, que o empregador não queria ou não podia financiar.

Muzema é a nova favela – Mais sofisticada, mas não menos estável ou segura. Para o trabalhador, mais perto de seu mercado de trabalho. E com uma aparência que não faz lhe vergonha. Parece até “arrumadinha”.

O mercado informal é o mesmo; tudo irregular. O terreno é invadido, em área de proteção ambiental (e, por isso, não acessível ao mercado formal), e provavelmente público. Ser um terreno público facilita a permanência no local, já que sendo público, caso haja, muito eventualmente, uma ação judicial do poder público pedindo a desocupação, os magistrados provavelmente irão ceder à tentação de “deixar ficar”, em face da necessidade daqueles que “colocaram ali todas as suas economias para ter sua casa”; serão os beneficiários “da vez”,  na ocupação do patrimônio público que, futuramente, serão, como de costume, regularizados por uma lei, “pela última vez”.

Com relação às áreas públicas de proteção ambiental, hoje só se fala em retirar moradores irregulares “se for área de risco”. Em outras palavras, o recado traduzido é: se a área for pública, e de importância ambiental, pode invadir porque a chance de ali ficar é de 100 %. Se for área ambiental pública de risco, a grilagem da área pública se torna mais arriscada:

1. Pode deslizar e perder tudo;

2. Mas também pode não cair e obter prioridade em um aluguel social. Ou então conseguir, eventualmente, uma relocação em outra área.

Mas, não nos enganemos. A tomada de terras públicas e ambientais não são organizadas pelas populações necessitadas. Elas são as clientes deste mercado de organizações centenárias de grilagens de terras no Brasil; são vítimas de nossa complacência com os governos que se omitem no planejamento urbano adequado das cidades. Por governos incluo o Executivo e o Legislativo. E também o Judiciário, por sua falta de interesse e formação no tema, pela sua falta de atuação eficaz no tempo, e na qualidade e coerência de suas decisões.

A vantagem para os “irregulares” agora é que, com a nova lei de regularização fundiária – a lei 13.465/2017 – todas estas irregularidades poderão, com facilidade, serem regularizadas em nome do título fundiário do falso “direito à moradia”. Tudo, mais uma vez, em detrimento de uma cidade planejada e com qualidade de vida.  A nova lei de regularização fundiária é a materialização do ditado mexicano: “mejor pedir perdón, que pedir permiso“.

Que os morros deslizem, as casas caiam – o importante é o título de propriedade!

Programas habitacionais – Assim, fazendo primeiro, e resolvendo depois, o poder público, nos três níveis (União, Estados e Municípios) que têm, constitucionalmente, a competência e a responsabilidade de “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico” (art.23, IX Constituição Federal), vai deixando de lado esta ação referente aos programas habitacionais; como se isto não fosse assunto dele, mas do mercado – formal ou informal; dos empresários regulares, ou assunto da milícia…

E mais. Abre mão de fazer o planejamento do território, intervindo no mercado imobiliário, para induzir o atendimento de estratos mais amplos da população. O Estado tem deixado ao deixar ao “salve-se quem puder” o acesso à moradia de uma parcela cada vez mais significativa da população.  Por isso, as favelas ainda proliferam no século XXI, agora verticalizadas, no modelito de prédios “arrumadinhos”. 

Isto tudo apesar da Constituição Federal prever, no seu art.21 IX  e XX, como competência da União:

IX – elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; (…)

XX – instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;

Onde está o Plano Nacional de Ordenação Territorial que estabeleça obrigações e instrumentos, de observância obrigatória pelo planejamento urbano municipal, para viabilizar o acesso regular à terra urbana de habitação para todas as faixas de renda da população? Simplesmente não há.  Aliás, parece que o assunto decresceu de importância, já que além do Ministério das Cidades, até o Conselho das Cidades acaba de ser extinto.

Onde está o Plano de Ordenação Territorial dos Estados, conforme prevê o artigo 4º do Estatuto das Cidades?

Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:

I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;

II – planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões;

Portanto, se a casa cai, a responsabilidade, por ação e omissão, é dos três níveis de governo, que ainda não fizeram o dever de casa em matéria de ordenação do território, território este é o bem público comum de todos os brasileiros.

Você pode gostar...

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

pt_BRPortuguese
pt_BRPortuguese