Decisão do Juiz Federal convocado Dr. Marcelo Pereira
Inteiro teor da decisão do Juiz Federal convocado Dr. Marcelo Pereira proferida no recurso de apelação nº 427053 no qual foi vencedor por unanimidade o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
NO DJ 19/08/2009
RELATÓRIO
Trata-se de recursos de apelação interpostos pela Empresa Brasileira de Terraplanagem e Engenharia S/A (EBTE) às fls.748/781, com razões aditadas às fls.2.731/2.773, pelo Ministério Público Federal às fls.1.481/1.553 e pelo Município do Rio de Janeiro às fls.876/906 em face da sentença de fls.727/745, integrada pelo decisum de fls.1.456/1.462, proferida pelo Juízo da 11ª Vara Federal/RJ, que julgou improcedente o pedido autoral, determinando que a parte autora fosse cientificada de que “a continuidade das construções acarretará o pagamento de multa diária de R$ 150.000,00 (cento e cinqüenta mil reais) e para que proceda à demolição das obras realizadas com supedâneo na decisão proferida às fls.286/289, sem autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- IPHAN, restabelecendo a paisagem e a estrutura natural anteriores à referida decisão, no prazo de seis meses a contar do trânsito em julgado da sentença de fls.727/745, sob pena de multa diária de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais)”.
Em suas razões recursais, a EBTE aduziu, preliminarmente: a) que o Município do Rio de Janeiro deveria ter integrado o pólo passivo da relação processual; b) que a sentença apelada incidiu em julgamento extra petita ao impor à parte autora da demanda obrigações de fazer e de não fazer; c) que o devido processo legal não foi observado no curso da audiência especial; d) que houve ofensa à imparcialidade do Juízo. No mérito, a Apelante sustentou que o tombamento requerido em 1965 não contemplou a área da Marina da Glória aduzindo, sucessivamente, que se tombamento houve este foi cancelado pela decisão do Presidente da República que determinou a cessão da área ao Município do Rio de Janeiro. No mais, aduziu que o perito designado pelo Juízo concluiu que o Projeto de Revitalização executado pela Apelante é regular, argumentando, ainda, que tal plano de obras cumpre estritamente os dispositivos da legislação ambiental.
O Ministério Público Federal, por sua vez, requereu em seu recurso a condenação da EBTE ao pagamento de multa por litigância de má-fé.
Nas razões recursais apresentadas pelo Município do Rio de Janeiro foram repetidas as questões preliminares suscitadas pela EBTE em seu apelo quanto à nulidade da sentença em razão do julgamento extra petita e a ofensa ao contraditório no curso da audiência especial realizada, tendo sido sustentado no mérito o não tombamento das áreas correspondentes ao Parque do Flamengo e à Marina da Glória e, sucessivamente, o destombamento de tais bens, bem como que a decisão do IPHAN, de não examinar o projeto de revitalização, é nula por desvio de finalidade e que a pretensão de tornar todo o Parque do Flamengo non aedificandi não é razoável.
Os recursos foram recebidos, respectivamente, às fls.870, 911 e 2.775, todos no duplo efeito, exceto quanto à impugnação relativa à revogação da decisão que concedeu a antecipação dos efeitos da tutela.
Foram oferecidas contra-razões às fls.1.032/1.041 pelo IPHAN, às fls.1.069/1.074 pela União Federal, às fls.2.822/2833 pela EBTE, às fls.2.883/2.888 pelo Município do Rio de Janeiro e às fls.3.076/3.89 pelo Ministério Público Federal.
Remetidos os autos a este Eg. Tribunal, o Parquet Federal se manifestou às fls.3.167/3.207 pelo desprovimento dos recursos interpostos pelo Município do Rio de Janeiro e pela EBTE e pelo provimento da apelação interposta pelo Ministério Público Federal.
É o necessário relatório. Peço dia para julgamento.
JUIZ CONVOC. MARCELO PEREIRA DA SILVA NO AFAST. DO RELATOR
VOTO
Preliminarmente, cumpre examinar as questões suscitadas pela parte autora, relativas à nulidade da sentença apelada, à não observância do devido processo legal no curso da audiência especial e à ofensa à imparcialidade do Juízo.
Segundo sustenta a EBTE, a sentença apelada teria incidido em julgamento extra petita ao condená-la ao cumprimento de obrigação de fazer e de não fazer.
Retirada do contexto dos autos, a alegação parece perfeitamente plausível, pois à EBTE, na qualidade de autora da demanda, e ausente reconvenção, não poderia ser imposta a alegada condenação.
Todavia, a determinação contra a qual se insurge a Apelante não consubstancia provimento de natureza condenatória, tratando-se de medida levada a efeito pelo Magistrado a quo com vistas, unicamente, a atender ao disposto no §4º do art. 273 do CPC, já que, com o reconhecimento da improcedência do pedido autoral, tornou-se necessário disciplinar os efeitos da revogação da tutela antecipatória concedida no curso dos autos, dentre eles, o relativo à necessária recomposição da situação fática existente à época da prolação daquele decisum.
Neste sentido, destaca-se o ensinamento de TEORI ALBINO ZAVASCKI ao comentar os efeitos da revogação da medida antecipatória in Antecipação da Tutela, 5.ed.- São Paulo: Saraiva, 2007, p.103, verbis:
“Além de imediata, a eficácia será ex tunc. A situação, na hipótese, é semelhante à da revogação, por sentença, das liminares concedidas em mandado de segurança (Súmula 405 do STF) ou em ação cautelar, de modo que, com seu advento, a situação fática há de ser recomposta desde logo e de modo integral.
(…) Revogada a medida, a restituição das coisas ao estado anterior se processará nos próprios autos, como ocorre com qualquer execução provisória que deva ser desfeita, sendo que os danos, se for o caso, serão ali apurados e executados (CPC, art. 475-O, II)”.
Não é sem razão que o §3º do art.273 do CPC determina que a efetivação da medida antecipatória deve observar as disposições processuais relativas à execução provisória da sentença, dentre elas o disposto no inciso II do art. 475-O do CPC, segundo o qual, a medida ficará “sem efeito, sobrevindo acórdão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos, por arbitramento”. (original sem grifos).
Note-se, portanto, que a determinação judicial em comento, diante da ausência de compatibilidade entre o provimento que, após a conclusão da investigação probatória, deixa de acolher a pretensão autoral e aquele que, com base em juízo de mera verossimilhança do direito, defere a antecipação de tutela, e à luz do disposto nos artigos mencionados, era medida a ser obrigatoriamente adotada pelo Juízo a quo, não havendo que se falar em malferimento ao princípio dispositivo.
De igual maneira não se identifica a apontada ofensa ao devido processo legal no curso da audiência especial que, segundo sustenta a Autora, teria sido designada com o objetivo de conciliação e tornou-se “verdadeira Audiência de Instrução e Julgamento”.
Compulsando-se os autos constata-se que no curso da referida Audiência Especial foi lavrada a ata de fls.717/718, na qual, além de não haver registro acerca da oitiva de testemunhas, o que não corrobora a alegação da EBTE de que várias pessoas teriam sido ouvidas irregularmente em tal ocasião, inexiste anotação acerca de eventuais requerimentos formulados pela parte autora com vistas a consignar, no citado documento, as irregularidades aqui apontadas, razão pela qual descabe acolher também tal preliminar.
Prescinde de maiores considerações a alegada ofensa à imparcialidade do Juízo, suscitada pela EBTE em razão de o Magistrado a quo ter se valido de parecer elaborado por arquiteta do IPHAN como razões de decidir e desconsiderado o laudo pericial produzido pelo Perito Judicial. A cognição a ser exercida no momento da prolação da sentença é livre, podendo o Juízo valer-se de quaisquer dos elementos que integram o conjunto probatório formado nos autos, não havendo determinação legal que vincule o provimento jurisdicional ao resultado de exame pericial eventualmente produzido.
No mais, conforme consignou Aquele Magistrado à fl.1.4959, “não se mostrou pertinente a este magistrado qualquer alusão ao conteúdo do laudo pericial acostado aos autos, por ser desnecessário conhecimento técnico especializado, em domínio científico estranho à ciência jurídica, para a resolução de litígio concernente ao pedido para que fosse proferida tutela jurisdicional declaratória para ser reconhecido o “direito de construir na área aforada” e impedida a autarquia federal de “decretar área non aedificandi, o polígono destinado à Marina, subordinada à construção na área ao zoneamento municipal”.
Ainda, preliminarmente, faz-se necessário definir a situação jurídica do Município do Rio de Janeiro no presente feito, sendo o caso de analisar se o referido ente, conforme alega a EBTE, deveria ter figurado no pólo passivo da relação processual, bem como se o recurso de apelação por ele interposto merece ser admitido.
No que tange ao alegado litisconsórcio passivo entre a União Federal, o IPHAN – que já figuram na lide- e o Município do Rio de Janeiro, a EBTE fundamenta a sua necessidade no fato de a área objeto de discussão ter tido o seu domínio útil cedido ao Município pela União Federal, bem como no interesse do Município do Rio de Janeiro na revitalização da Marina da Glória para a sua utilização durante os Jogos Pan-Americanos de 2007.
É certo que, conforme alega, a EBTE requereu a intimação do Município do Rio de Janeiro para que manifestasse a existência de interesse em intervir no feito, o que foi efetivado, seguindo-se a manifestação de fls.521/522, na qual o referido ente informa “que não é parte no presente processo, mas tem total interesse no adequado aproveitamento da área”, e sustenta que “no presente processo não se discute a cessão da área pela União ao Município do Rio de Janeiro, mas apenas a viabilidade ou não de um projeto urbanístico apresentado pela autora ao IPHAN. Tal questão é da esfera de outro ente, que tem total competência na tutela do bem em questão, que é também tombado pela legislação federal”.
Conforme reconhecido pelo próprio Município do Rio de Janeiro, o fato de a área sobre a qual versa o litígio lhe ter sido cedida pela União Federal não o torna parte legítima para integrar a lide, ainda mais para figurar no pólo passivo da relação processual. A questão discutida nesta ação cinge-se à alegada negativa do IPHAN de examinar o Projeto de Revitalização elaborado pela EBTE para o terreno em questão, não tendo sido formulada qualquer pretensão apta a afetar a mencionada cessão efetuada pela União Federal.
Aliás, é no mínimo estranho o fato de ser a EBTE, autora da presente ação, quem se põe neste momento a questionar a não intervenção do Município no feito, já que, podendo incluí-lo, como agora pretende, no pólo passivo da relação processual, limitou-se a ajuizar a demanda somente em face da União Federal e do IPHAN, abstendo-se de deduzir qualquer pretensão contra aquele ente federado.
Quanto ao recurso de apelação, verifica-se que o Município do Rio de Janeiro apela na qualidade de terceiro prejudicado, valendo-se do que dispõe o art.499 do CPC, razão pela qual o cabimento de tal via recursal encontra-se subordinado à comprovação do “nexo de interdependência entre o seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judicial”.
Neste aspecto, o entendimento a ser adotado aqui é o mesmo que levou a Presidência deste Eg. Tribunal a não conhecer do pedido de suspensão dos efeitos da sentença, formulado pelo Município do Rio de Janeiro nestes autos. Naquela ocasião sustentou o Insigne Relator Presidente Des. Fed. FREDERICO GUEIROS que “o Município não foi parte na referida ação e o seu interesse no momento gira em torno da necessidade do prosseguimento de certas e determinadas obras na denominada Marina da Glória para efeito da realização do Torneio do PAN-AMERICANO na Cidade do Rio de Janeiro, o que não se compadece com o teor da pretensão deduzida em juízo pela parte autora, a empresa privada concessionária de serviços para a exploração da referida Marina” (Processo nº 2006.02.01.010856-5, DJU 29.09.2006). (original sem grifos)
No apelo, o Município do Rio de Janeiro aduz que o seu interesse na reforma da sentença liga-se à proximidade dos Jogos Pan Americanos de 2007 e à necessidade de que sejam implementadas as construções necessárias para a utilização da área da Marina da Glória durante aquele torneio, fatos estes que, como bem ressaltou o Insigne Des. Fed. FREDERICO GUEIROS na passagem acima citada, não possuem identificação com a presente demanda, já que à data da propositura desta ação em 29.10.1999 o Rio de Janeiro não havia sequer sido eleito para sediar aquele evento esportivo, o que somente aconteceu em 24.08.2002.
Corrobora tal constatação o fato de que o Município do Rio de Janeiro não defende a implantação do projeto originariamente apresentado pela EBTE ao IPHAN, cujo não acolhimento ensejou a propositura da presente ação. Busca aquele ente federado a implementação de Projeto de Revitalização elaborado em razão de aditivo contratual firmado com a EBTE em 02.12.2005, no qual constariam construções necessárias à realização dos referidos Jogos Pan-Americanos de 2007.
Diante de tais alegações, cabe concluir pela não admissibilidade do recurso, porquanto, além de versar sobre fatos estranhos à questão discutida nos autos, o alegado interesse do Município na interposição do apelo deixou de existir com a realização dos citados Jogos Pan-Americanos de 2007.
No mérito, o recurso apresentado pela EBTE funda-se na alegação de que a área da Marina da Glória não teria sido objeto de tombamento e que, se tombamento houve, este teria sido revogado pelo Decreto nº 83.661/1979, sustentando, ainda, que o Projeto de Revitalização submetido à aprovação do IPHAN é regular, além de atender às normas ambientais necessárias.
Conforme relatado na peça inicial, por ter se sagrado vencedora de procedimento licitatório realizado pelo Município do Rio de Janeiro, a EBTE firmou com o referido ente “Contrato de Concessão”, assumindo a obrigação de promover a revitalização do local conhecido como Marina da Glória e, para tanto, elaborou Projeto de Revitalização que, submetido à aprovação do IPHAN, teve o seu exame negado ao fundamento de que a área em questão seria non aedificandi.
Através do “Contrato de Concessão” supramencionado, o Município do Rio de Janeiro concedeu à EBTE o direito de explorar área de 65.500 m² localizada “na parte setentrional do Parque do Flamengo, onde um farol assinala a sua entrada, possuindo um canal de acesso que apresenta uma profundidade média de 4,5m; localiza-se em terreno acrescido de marinha, com área de 65.50 m² dentro dos limites expressos na planta que se constitui no Anexo IV do Edital da porção maior de 105.890 m², a qual se localiza ao sul da Enseada da Glória, medindo 270m, a partir do espigão da Praia do Flamengo em direção à Avenida Infante D. Henrique, 274 m seguindo alinhamento que faz ângulo interno de 140º e segue em direção ao mar, em curvas com desenvolvimento total de 1.309m acompanhando a linha de enrocamento até o ponto inicial, que se situa a menos de 100m da atual orla marítima e a menos de 1.320m de distância do Aeroporto Santos Dumont, com área molhada de 12ha, protegida de ondas e ventos”.
O local acima descrito situa-se no Parque do Flamengo e é parte integrante de área maior (150.890m²), cedida pela União Federal ao Município do Rio de Janeiro com a finalidade de viabilizar a “construção do complexo Marina-Rio” (fls.206/207), tratando-se de terreno que, em que pese a alegação da EBTE, foi objeto de tombamento, com processo instaurado a partir de solicitação formulada pelo então Governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda.
Conforme se depreende do documento juntado às fls.349/350, em razão da referida solicitação, foi instaurado no Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje IPHAN, o Processo nº 748-T-64, no curso do qual foi efetivado o tombamento do local denominado Parque do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro, compreendendo a área discriminada nas plantas anexadas ao referido processo e “a área marítima até cem metros da praia, em toda a extensão do parque”, seguindo-se, em 28.07.1965, a inscrição do referido ato, sob o n° 39, às folhas 10 do Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.
Trata-se de questão que, inclusive, já foi examinada por este Eg. Tribunal no julgamento do Recurso de Apelação nº 2000.51.01.000571-5, da relatoria do Juiz Federal GUILHERME CALMON, no qual concluiu-se que “O Parque do Flamengo constitui bem integrante do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, regularmente tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em 28 de julho de 1965, por meio do processo n° 748-T-64, inscrito sob o n° 39, folhas 10, no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do IPHAN”.
Na sequência das alegações formuladas pela EBTE, cabe afastar também a argumentação de que o Decreto nº 83.661/1979, que disciplinou a cessão da Marina da Glória ao Município do Rio de Janeiro, teria revogado o tombamento do local.
De acordo com o raciocínio desenvolvido pela EBTE, o fato de o referido decreto ter consignado que o terreno cedido se destinaria à construção de um “complexo turístico” teria importado no seu “destombamento”, já que o citado empreendimento não seria compatível com a referida limitação administrativa. Todavia, o reconhecimento do valor histórico ou paisagístico de determinado bem, com o seu conseqüente tombamento, não implica torná-lo imune a qualquer tipo de intervenção, pois, conforme consignou o Insigne Juízo a quo,”as restrições parciais inerentes ao tombamento autorizam o uso do bem de modo não divergente aos deveres de preservação impostos em favor da proteção do patrimônio histórico e artístico nacional”.
Ainda quanto ao tombamento do Parque do Flamengo, retira-se dos documentos juntados aos autos que o mesmo foi efetivado sem que houvesse sido totalmente concluídas as obras previstas no plano original elaborado para área por Affonso Eduardo Reidy (urbanismo e arquitetura) e Roberto Burle Marx (paisagismo). Tal situação levou a comissão responsável a não limitar o tombamento às construções existentes no Parque à época, optando-se por aplicar a referida limitação administrativa ao conjunto formado pelas obras já realizadas e as que, apesar de ainda não implementadas, haviam sido previstas no referido projeto originário, o que foi feito tendo por base as plantas anexadas no referido Processo nº748-T-64, nas quais era possível identificar o que já havia sido construído e o que ainda faltava para a conclusão do citado projeto.
De acordo com o Parecer anexado às fls.351/366 dos autos, elaborado em agosto de 1998 pela Divisão de Estudos de Acautelamento do IPHAN, “o objetivo desse tombamento atípico, com a obra ainda por terminar, era protegê-la desde logo das ações especulativas que esta área pública, situando-se na valorizada orla marítima carioca, certamente iria inspirar, as quais se contraporiam à sua função social”.
Após a efetivação do tombamento, seguiram-se a apresentação e a rejeição de vários projetos elaborados com vistas à alteração da área em questão. Assim, na 134ª Reunião do Conselho Consultivo do IPHAN, realizada em agosto de 1988, dos três planos apresentados relativos a área do Parque do Flamengo, apenas um deles foi acolhido, assim mesmo em parte.
Trata-se do projeto denominado “Centro Cultural da Glória”, elaborado pelo próprio Burle Marx, e no qual havia a previsão de construção de Aquário, Umbráculo, Auditório, Circo Aquático e Restaurante. Ao analisar o referido plano, o Conselho Consultivo do IPHAN, além de autorizar apenas as edificações que já haviam sido previstas no mencionado plano original, indeferindo a construção do Circo Aquático e do Restaurante, decidiu que, a exceção das construções já autorizadas pela então Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e que foram previstas no projeto originário, toda a área do Parque seria considerada non aedificandi.
Com base no que restou decidido naquela ocasião, e tendo em conta a abrangência do tombamento efetuado que, repita-se, compreendeu não só as obras existentes à época no Parque do Flamengo, mas também aquelas que haviam sido previstas no plano originário elaborado por Affonso Eduardo Reidy e por Roberto Burle Marx, foi proferida pelo IPHAN a decisão questionada pela EBTE que, diferente do que foi alegado, não importou na ofensa ao devido processo legal.
Conforme os termos da ata lavrada por ocasião da 16ª Reunião do Conselho Consultivo do IPHAN em novembro de 1998 (fls.367/377), o exame do referido projeto iniciou-se com a apresentação de relatório elaborado pela chefia da Divisão de Estudos e de Acautelamento do IPHAN, segundo o qual, o programa proposto consistiria na construção de “centro de exposições náuticas; auditório de 850 lugares (indicado como “centro de convenções”); terminal turístico com 50 lojas; via pública de carros no contorno da baía, sede para a área de regatas; área de lazer no pavilhão-sede da Marina; grandes estacionamentos; 14 píeres; e infra-estrutura de apoio”. Foi ressaltado também no referido relatório que a área em questão seria sobejamente agredida com a colocação de 14 píeres, recortando o espelho d´água, a construção de grandes estacionamentos – incluindo um de ônibus junto à orla – e a instalação de gradil entre o Parque e a Baía de Guabanabara, e que “também seria melhor evitar a via pública de carros no contorno da baía, proposta para dar acesso direto da Marina à área de regatas junto ao MAM. Há risco dessa via se transformar em mais uma via urbana que privilegie os carros em detrimento dos pedestres para os quais o Parque foi criado. Note-se que as pequenas vias e os estacionamentos previstos no Plano original se dispuseram de forma perimetral, de modo a estimular caminhadas e passeios a pé (…)”.
Passando-se à etapa de votação do referido Projeto, o Presidente do IPHAN destacou que a área do Parque do Flamengo “com exclusão das construções previstas no projeto Reidy, foi tombada e considerada non aedificandi justamente para permitir à coletividade a fruição daquele espaço”, seguindo-se a manifestação do Conselheiro Ítalo Campofiorito no sentido de que seja mantido o tombamento do projeto Reidy “considerando descabida qualquer discussão sobre detalhes de um projeto que não atende às exigências decorrentes do tombamento”. Dada a palavra ao Conselheiro Modesto Carvalhosa, foi endossado o voto do Conselheiro Ítalo Campofiorito e consignado que “o projeto Reidy admitia a construção de 6 (seis) píeres para ancoradouro público de barcos que não pertenciam a sócios do Iate Clube .Quanto ao projeto constante na pauta, advertiu sobres as suas conseqüências: apropriação indevida de um bem público inestimável para realização de uma mistura de parque temático, shopping center, parque aquático, etc; e para o surgimento de novas pretensões. Manifestou a sua indignação, considerando um escárnio à função dos conselheiros a proposta de apropriação de um bem público formado inclusive por áreas verdes, classificadas pelos interessados como terrenos baldios (…)”. Após tais manifestações, foram proferidos votos pelos demais Conselheiros presentes, todos devidamente fundamentados e no mesmo sentido daquele exarado pelo Conselheiro Ítalo Campofiorito, deliberando aquele Conselho por reafirmar “a sua posição a favor do tombamento voluntário, em 1965, do Plano do Parque do Flamengo de autorida de Affonso Eduardo Reidy (urbanismo e arquitetura) e Roberto Burle Marx (paisagismo), de forma a que sejam considerados non-aedificandi todos os terrenos cuja ocupação não tenha sido prevista no referido Plano”.
Nota-se, portanto, que o IPHAN não deixou de analisar a viabilidade do projeto elaborado pela EBTE e, confrontando as construções nele previstas com os limites do tombamento efetuado, concluiu ao final pela sua incompatibilidade com o Parque do Flamengo.
Neste sentido, consignou o Magistrado a quo: “ainda que seja empreendida leitura perfunctória da transcrição dos debates do colegiado, observa-se a discussão quanto ao mérito da consulta, destacando-se a sua incongruência com a finalidade do Parque do Flamengo”.
Retira-se dos autos que a tônica da preservação do mencionado plano original foi o que norteou todas as decisões do IPHAN aqui noticiadas, servindo para fundamentar não só o alegado não exame do Projeto de Revitalização apresentado pela EBTE como a rejeição de vários outros, o que por certo, longe de identificar a existência de uma postura intransigente com relação às intervenções pretendidas no local, revela a preocupação do referido órgão com a preservação do conjunto arquitetônico e paisagístico tal qual foi concebido.
Neste sentido, impende transcrever, por elucidativa, passagem retirada da sentença apelada:
“Traçado o escorço histórico das diretrizes seguidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional não se vislumbra qualquer indício contrário ao interesse público quanto à preservação da Marina da Glória, enquanto parcela integrante do Parque do Flamengo. A restrição imposta ao polígono como área non aedificandi não representa a impossibilidade de modificação da estrutura física dos prédios integrantes da Marina – como se conclui da leitura das orientações adotadas pela autarquia federal – mas, que estes sejam utilizados com a finalidade precípua de atendimento ao interesse da coletividade, em suas gerações presentes e futuras, não sobrepujando o conjunto arquitetônico do Parque em sua íntegra. Os sucessivos projetos de exploração econômica da marina da Glória apresentados nos autos demonstram o intuito de realizar construções capazes de rivalizar com o interesse público ínsito à preservação do patrimônio histórico e artístico nacional (arts.215 e 216, da Constituição da República de 1988), inexistindo qualquer fundamento idôneo para ser privilegiado, na presente hipótese, o interesse particular da parte autora. Em audiência especial realizada em 29 de agosto de 2006, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional não ofereceu resistência à implantação de projetos voltados às atividades próprias às marinas e que não pusessem em risco a preservação do Parque, remanescendo a resistência da demandante em submeter-se às razoáveis diretrizes indicadas pela autarquia federal, inviabilizando, por conseguinte, a transação judicial”. (original sem grifos).
Por fim, quanto ao alegado cumprimento das normas ambientais, trata-se de proposição incapaz de influir no resultado da lide, pois a decisão do IPHAN, ora atacada, nada menciona acerca da existência de cumprimento, ou não, da lei ambiental pela parte autora, sendo certo que a sustentada observância dos preceitos ambientais, além de não ter sido defendida na peça inicial, também não foi examinada pela sentença apelada, não tendo sido, conseqüentemente, devolvida ao exame deste Eg. Tribunal.
Com relação ao recurso de apelação do Ministério Público Federal, duas constatações impedem o seu conhecimento por este Eg. Tribunal.
O Ministério Público Federal foi pessoalmente intimado dos termos da sentença apelada em 29.03.2007 (quinta-feira) e opôs, tempestivamente, em 09.04.2007 (segunda-feira) embargos de declaração (fl.1.080). Providos em parte os referidos embargos, o Ministério Público Federal foi pessoalmente cientificado em 22.06.2007 (sexta-feira) e interpôs o seu recurso de apelação, via fac-símile, em 24.07.2007 (terça-feira).
Embora o recurso tenha sido transmitido, através de fac-símile, dentro do prazo para a sua interposição, a peça original de interposição somente foi juntada aos autos em 30.07.2007 (fl.1.557), após o prazo legal de cinco dias, previsto no parágrafo único do art.2º da Lei nº 9.800/99.
E ainda que fosse o caso de superar a apontada intempestividade, o que não é, constata-se que naquela peça de interposição, enviada via fac-símile, não foi aposta qualquer assinatura, o que também aconteceu com as razões que se seguiram, sendo certo que somente a petição original de interposição, apresentada fora do prazo, foi devidamente subscrita pela Procuradora da República Ana Padilha L. de Almeida.
Dispositivo
Do exposto, não conheço dos recursos de apelação do Município do Rio de Janeiro e do Ministério Público Federal, e nego provimento ao recurso de apelação da EBTE.
É como voto.
JUIZ FED. CONVOC. MARCELO PEREIRA DA SILVA NO AFAST. DO RELATOR
EMENTA
ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL. JULGAMENTO EXTRA PETITA. LIVRE VALORAÇÃO DAS PROVAS. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO. INEXISTÊNCIA. PROJETO DE REVITALIZAÇÃO DA MARINA DA GLÓRIA. PARQUE DO FLAMENGO. TOMBAMENTO.
1 Não acolhido o pleito autoral, e constatada a reversibilidade das construções autorizadas em sede de antecipação de tutela, impende seja determinado que a parte autora restabeleça o terreno alterado ao seu status quo ante, afastada eventual ofensa ao princípio dispositivo.
2 A cognição a ser exercida no momento da prolação da sentença é livre, podendo o Juízo valer-se de quaisquer dos elementos que integram o conjunto probatório formado nos autos, não havendo determinação legal que vincule o provimento jurisdicional às conclusões do Perito Judicial, mormente se a questão discutida é unicamente de direito.
3 Cingindo-se a controvérsia objeto dos autos ao não acolhimento, pelo IPHAN, de Projeto de Revitalização elaborado para o local conhecido como Marina da Glória, o fato de a referida área ter sido cedida ao Município do Rio de Janeiro pela União Federal não impõe a obrigatoriedade de aquele cessionário figurar no pólo passivo da relação processual.
4 O Parque do Flamengo, situado na cidade do Rio de Janeiro, foi objeto de tombamento registrado em 28.07.1968, sob o nº 39, à fl.10 do Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, condição esta que não foi alterada com a edição do Decreto nº 83.661/1979, que disciplinou a cessão de parte de sua área ao Município do Rio de Janeiro, tratando-se de limitação administrativa que compreende o conjunto formado pelas construções existentes no local à época de sua imposição e pelas obras que, apesar de ainda não implementadas, haviam sido previstas no projeto originário, elaborado para a área por Affonso Eduardo Heidy e por Roberto Burle Marx.
5 Não configura ofensa ao devido processo legal a decisão proferida pelo Conselho Consultivo do IPHAN que, diante de Projeto de Revitalização no qual foram previstas construções não contempladas no plano original do Parque do Flamengo, manifesta-se pela sua incompatibilidade com o tombamento efetuado na área e reitera a natureza non aedificandi do local.
6 Descabe conhecer de recurso interposto por terceiro prejudicado quando não comprovado, nos termos do art. 499 do CPC, o “nexo de interdependência entre o seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judicial”.
7 É intempestivo o recurso de apelação que, embora transmitido via fac-símile, dentro do prazo para a sua interposição, teve o seu original juntado aos autos após o prazo legal de cinco dias previsto no parágrafo único do art.2º da Lei nº 9.800/99.
8 Recurso de apelação do Município do Rio de Janeiro e do Ministério Público Federal não conhecidos. Recurso de apelação da parte autora desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas:
Acordam os membros da 8ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por unanimidade, em não conhecer dos recursos de apelação do Município do Rio de Janeiro e do Ministério Público Federal e negar provimento ao recurso de apelação da parte autora, nos termos do voto do Relator.
Rio de Janeiro, de de 2009.
JUIZ CONVOC. MARCELO PEREIRA DA SILVA
NO AFAST. DO RELATOR