Leis de uso e ocupação do solo: iniciativa do Executivo, necessidade de estudos técnicos e participação popular. Uma nova decisão do Tribunal de Justiça RJ
Em setembro de 2019, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro julgou inconstitucional uma lei de iniciativa da Câmara de Vereadores que dispunha sobre a regularização de parcelamentos informais na cidade, e que modificava a legislação então existente. Esta decisão é, em algum aspecto, precursora no âmbito da justiça fluminense e pode começar a traçar rumos mais técnicos e consistentes para o planejamento das cidades no Estado.
Vejamos:
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) foi proposta pelo Ministério Público do Estado e pela Procuradoria do Rio. Trago, ao final do texto, extratos importantes da argumentação dos proponentes da ação que abordaram três aspectos importantes:
1º Leis de uso do solo materializam uma política pública e, como tal, ela deve se proposta pelo chefe do Executivo.
2º Leis de uso do solo devem ser fruto de estudos técnicos que avaliem os impactos na cidade, inclusive os ambientais e na previsão de infraestrutura de serviços públicos.
3º Leis de uso do solo não prescindem da participação da sociedade em seu processo de elaboração e proposição
No acordão, a Desembargadora Relatora “mirou no que viu, e acertou no que não viu”. Ou seja, a sua fundamentação é, ao meu ver, equivocada, mas a decisão restou correta. Sem dúvida foi motivada pela sua sensibilização ao avanço das milícias na produção de unidades imobiliárias irregulares em terrenos aleatórios na Cidade.
O argumento do voto central do voto, e que consta da ementa do Acordão, é no sentido de que:
“O uso e parcelamento do solo são atividades administrativas, representativa de atos de gestão, exclusivos do Poder Executivo, no exercício de seu poder discricionário. Violação ao Princípio da Separação dos Poderes.(…) A lei questionada promoveu o ordenamento territorial, usurpou a função do chefe do Executivo e feriu a Constituição do Estado do Rio de Janeiro. (…) incluídas áreas de preservação ambiental e lotes sequer ocupados, o que seria um incentivo à especulação imobiliária de áreas dominadas por milícias, por exemplo.”
Embora a execução da política de planejamento urbano seja feita por atos administrativos, a sua previsão legal deve constar, em seus condicionamentos e moldura, de atos legislativos. Porém, para formular estes atos legislativos, que atendam o preceito constitucional da função social da cidade, as proposições têm que se basear em estudos técnicos que viabilizem o acesso aos serviços públicos urbanos, e à qualidade de vida para todos.
Neste sentido, ao final, a ementa do acordão diz:
“Como se não bastasse, foi editado sem qualquer estudo ou planejamento a lhe conferir um mínimo de legitimidade.”
Ou seja, só estudos e o planejamento confere às propostas de leis de uso e ocupação do solo a legitimidade necessária aos seus objetivos constitucionais. Na mosca…
Trechos da petição do MRJ :
“A Lei Complementar no 188/2018 deita por terra a política urbanística e ambiental promovida pelo Município, no exercício de suas competências constitucionais, pois altera a legislação de uso e ocupação do solo urbano sem qualquer respaldo técnico ou análise de seu impacto na dinâmica da cidade.” (…)
“Ora, a modificação de parâmetros urbanísticos, no caso para regularização de áreas ocupadas em desacordo com as regras estabelecidas para garantir a função social da propriedade urbana e as funções da cidade, pressupõe a preexistência de densa avaliação técnica, análise da evolução do desenvolvimento das várias regiões da cidade, além da efetiva participação da comunidade.” (…)
“No tocante à reserva de Administração [rectius: de Poder Executivo] para estabelecer e executar políticas públicas, não se pode deixar de mencionar, ainda, a jurisprudência consolidada do E. Supremo Tribunal Federal. Confiram-se, por todos, os seguintes precedentes: “2. As restrições impostas ao exercício das competências constitucionais conferidas ao Poder Executivo, entre elas a fixação de políticas públicas, importam em contrariedade ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes.” (ADI 4102 REF-MC, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2010, DJe-179 DIVULG 23-09-2010 PUBLIC 24-09-2010)”
“Ao contrário das normas modificadas pela Lei Complementar no 188/2018, esta foi lançada no regramento urbanístico sem qualquer compromisso com o impacto de sua aplicação da cidade. Basta ver que aplica de forma indiscriminada para praticamente a todo o território municipal norma excepcional, sem diagnóstico, projeção ou qualquer outro documento técnico a lhe dar suporte.”
“Ainda no que concerne aos parâmetros urbanísticos modificados aleatoriamente, o art. 2o da referida lei complementar altera substancialmente regras de uso e ocupação do solo para toda a cidade, independentemente do zoneamento previsto, refletindo diretamente na densidade das várias regiões da cidade. Diga-se que a densidade, ou seja, o volume de pessoas que se utilizam de determinada área para moradia, trabalho ou lazer, funciona como fator de ponderação para apurar a capacidade da infraestrutura urbana existente, ou projetada, para atender às funções sociais da cidade.”
“Os profundos danos gerados pela aplicação da Lei Complementar no 188/2018 não se limitam à ordem urbanística, mas atingem o patrimônio ambiental da cidade, cuja geografia, pródiga em montanhas e lagoas, impõe a adoção de todas as cautelas possíveis para evitar desastres, inclusive, com a perda de vidas.”
(grifos nossos)