Pandemia e a Revisão dos Planos Diretores: Prazos e Participação Social
A cidade do Rio de Janeiro e a cidade de São Paulo – e talvez outras cidades no Brasil – estão em processo de revisão de seus Planos Diretores (PDs). E a questão que se coloca é: como cumprir, em plena crise pandêmica, a determinação legal de participação social ampla e efetiva no processo de revisão dessa importante lei de planejamento?
As cidades que estão revendo seus PDs têm prazo legal, neste ano, para fazê-lo. Daí as perguntas: este prazo é para o prefeito mandar para a Câmara o projeto de lei, ou para finalizar todo o processo legislativo, com a aprovação do plano pela Câmara? Este prazo é improrrogável, e por ele se deve sacrificar, se preciso for, a participação social, sobretudo no que se refere ao tempo necessário para divulgação de todas as informações, propostas, debates e audiências públicas?
Vamos às respostas:
Inicialmente, cabe afirmar que não há resposta definitivamente certa para nenhuma das perguntas acima, uma vez que, nas interpretações das leis, cada vez mais se vê a realização do ditado popular que diz: “cada cabeça [de juiz], uma sentença”. Porém, não custa tentarmos aqui deduzir o que entendemos ser o caminho legal mais descomplicado para a aplicação das regras pertinentes à matéria.
Tudo parte do Estatuto da Cidade (ECi), principal lei federal que rege o assunto; nela encontramos as regras gerais de direito urbanístico, com prazos, formas e condições de elaboração e revisão dos PDs. Há que se levar em conta também uma vasta jurisprudência dos tribunais brasileiros que afirma a necessidade imperiosa de participação social nas leis urbanísticas, mormente na elaboração dos planos diretores.
Contudo, nada temos ainda sobre como fazer este processo em plena pandemia, quando os cidadãos têm fortes restrições a participar das tradicionais reuniões presenciais, e com boa parcela da população com fraco ou nenhum acesso à internet, como meio de se inteirar das informações.
Tentando, contudo, construir respostas necessárias, vamos tentar fazê-lo a partir da construção lógica e finalística das normas.
A situação da revisão dos PDs do Rio e de São Paulo é diversa. No Rio, o plano vigente é de 2011 e, portanto, está no termo final de atendimento do art.40,§3º do Estatuto da Cidade (ECi) que diz: “A lei que instituir o Plano Diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada 10 anos”. Em São Paulo, o prazo de revisão em 2021 decorre não da regra geral do ECi, mas de dispositivo existente no seu próprio PD de 2014 (art.4º§1º) que determina sua revisão a “ser elaborada de forma participativa, em 2021”.
Apesar de serem situações diversas, vamos tratá-las univocamente, pois a situação poderá ser analisada à luz do que dispõe o art.50 do ECi, que prevê a sanção por improbidade administrativa do prefeito, e demais agentes públicos que: a) impedirem ou deixarem de garantir, no processo de elaboração do PD, a participação social por audiências públicas, publicidade dos documentos produzidos, acesso às informações. b) Deixar de tomar providências necessárias para garantir a observância do prazo de revisão mínimo, de dez anos entre planos. Logo, é a possibilidade da sanção por improbidade administrativa do chefe do executivo e/ou agentes públicos que importa e induz ao cumprimento de ambos os dispositivos: formas necessárias de participação social, e cumprimento do prazo.
Contudo, a lei do Estatuto da Cidade há de ser lida e aplicada junto com a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), para sabermos se alguma dessas infrações previstas no Estatuto da Cidade se encaixa nas hipóteses previstas na Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92).
A LIA prevê três hipóteses de enquadramento de improbidade: as que geram enriquecimento ilícito do agente público (art.9º), as que geram prejuízo ao erário (art.10), e as que violam princípios administrativos (art.11). Então, na nossa hipótese, ficam descartados, em princípio, os enquadramentos em enriquecimento ilícito, ou em prejuízo ao erário. O enquadramento possível seria nas hipóteses do art.11 que prevê:
“Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: (…) II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;”
E mais: para que haja enquadramento por improbidade administrativa no artigo citado a vasta jurisprudência dos nossos tribunais tem decidido que o ato ou omissão do agente público há de ser doloso, ou seja, com a intenção de retardar ou deixar de praticar os procedimentos necessários ao comando legal; no nosso caso, aos procedimentos necessários à revisão do PD.
Logo, é plausível e absolutamente razoável se afirmar que não há possibilidade de enquadramento de qualquer agente público ou político na hipótese de improbidade administrativa, quando este estiver tomando todas providências, em plena pandemia, visando concretizar os procedimentos possíveis e necessários à revisão do plano diretor.
Respondendo, portanto, com mais assertividade à primeira pergunta, digo que cabe ao Prefeito, e a seus auxiliares, fazer os diagnósticos, os estudos, prestar as informações, fazer os debates, e as audiências necessárias à revisão do PD, e enviá-lo à Câmara dentro do prazo legal previsto (art.52, c/c art.40.§3º e §4º do ECi). Porém, se por força maior, decorrente de uma notória pandemia internacional, este complexo processo de revisão resultar atrasado, este retardamento certamente não se enquadra na hipótese de improbidade administrativa, já que o eventual retardo não foi nem “indevido”, e nem doloso.
Esta questão é importante até porque não se pode usar o pretexto do prazo legal, eventualmente retardado por força maior, para simplificar ou pular etapas no processo de elaboração e participação social na revisão do PD.
São vários os dispositivos legais – tanto federal, quanto estaduais e municipais, em suas constituições e leis orgânicas – que tratam da inescapável e essencial participação social na elaboração em qualquer processo de produção das leis de uso e ocupação do solo, especialmente no caso de Planos Diretores. E, como dissemos, a jurisprudência brasileira tem sido afirmativa no sentido de destituir de validade leis urbanísticas que não atendem a este requisito. Portanto, com ou sem pandemia, para elaborar este tipo de leis (urbanísticas), mormente o Plano Diretor, a participação social (com todos os seus requisitos e etapas) é condição de sua validade.
Por isso, podemos afirmar que o eventual retardo no cumprimento do prazo de finalização, pelo executivo, do projeto de revisão do Plano Diretor pode ser plenamente justificado, em tempos de pandemia; contudo, o que não se pode admitir é que, na revisão dos Planos Diretores, se deixe de atender plenamente a participação social por todos os meios possíveis, e até com mais generosidade temporal, já que ela – a participação social – tem sido condição de validade constitucional das leis urbanísticas.
Portanto, em tempos de pandemia, os esforços das Prefeituras devem ser no sentido de não se manterem inertes na execução das ações necessárias à revisão do PD. Toda a atenção deve ser posta em atender, por todos meios possíveis e necessários, a plena participação social, ainda que isto possa resultar em eventual retardo no cumprimento dos prazos legais. Com esta atenção, o resultado do processo de revisão se manterá integralmente válido, independentemente do tempo razoável a mais que leve para ser concluído. Neste caso, mesmo havendo retardo na conclusão no processo de revisão do PD, não há subsunção às hipóteses legais de improbidade administrativa.
Uma nota final: nos processos de revisão dos Planos Diretores do Rio de Janeiro e de São Paulo inúmeras entidades da sociedade civil têm se dirigido às respectivas Prefeituras, alertando para que a participação social não seja sacrificada pela pressão temporal. E em São Paulo, estas entidades apresentaram um interessante e prático iconográfico para este fim. Vale conferir aqui