Parecer de Sonia Rabello
Parque do Flamengo – obras na área da Marina da Glória – ilegalidade e ilegitimidade de sua realização
Parecerista: Sonia Rabello – Professora Titular de Direito Administrativo e Direito Urbanístico na Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2006.
Trata o presente de examinar os aspectos jurídicos concernentes à legalidade e legitimidade da tutela e dos atos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) frente ao pedido de realização de obras no Parque do Flamengo, na área denominada Marina da Glória, obras estas que estão sendo realizadas pelo contratado do Município do Rio de Janeiro, a Empresa Brasileira de Terraplanagem e Engenharia SA. (EBTE).
Este trabalho foi solicitado para subsidiar a Comissão Especial do Instituto dos Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio de Janeiro, criada para examinar o assunto.
A sistemática que adotarei será a de responder às principais perguntas que foram colocadas pelo grupo de trabalho, no que concerne às questões jurídicas que envolvem a matéria. Uma vez que estas forem esclarecidas, a questão de mérito poderá ser analisada pelos técnicos competentes, ou seja, examinar se há valor cultural na área e, em havendo, qual o seu conteúdo, a sua essência (motivação), e quais as restrições que automaticamente dela decorrem.
Face ao volume de informações e de aspectos legais que estão envolvidos, as respostas que daremos às perguntas serão, tanto quanto possível, sucintas. Estarei à disposição para qualquer aprofundamento ou esclarecimento adicional.
Iniciemos:
1. Qual a principal controvérsia que envolve as obras que estão sendo realizadas na área da Marina do Parque do Flamengo?
As obras na área do Parque que ora denominaremos de Marina estão sendo realizadas contra o parecer do Iphan, que as entendeu inviáveis. Como o Parque do Flamengo é área tombada, esta anuência seria necessária para que fosse concedida a respectiva licença de obra (1). Contudo, a EBTE, após a negatória do Iphan, que se deu pela oitiva de seu Conselho Consultivo, entrou com uma ação ordinária junto à Justiça Federal (1999), e obteve do Juízo Singular uma liminar de Antecipação de Tutela, ou seja, antecipação do pedido, no sentido de poder realizar as obras independentemente da anuência do Iphan. Esta decisão do Juízo singular foi confirmada por decisão de segunda instância (2001). Sobre as decisões, trataremos mais adiante.
2. O Parque do Flamengo, e a sua área de Marina, são tombados?
O Parque do Flamengo foi tombado (2) em 28 de julho de 1965, em função do pedido feito pelo então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, que governava a cidade-estado. O Parque do Flamengo foi feito no seu governo mediante aterro da Baía de Guanabara. Embora este aterro tenha sido realizado pelo governo local, a área aterrada consumiu parte da baía, vindo a constituir-se acrescidos de Marinha, e portanto, área do domínio federal (3). Não obstante, transcorridos mais de 40 anos, a área permaneceu sob administração da cidade do Rio de Janeiro, afetada ao uso de parque público desde a sua constituição (4). O processo de tombamento demarcou fisicamente a área, tanto explicitamente em ata, como em planta, inclusive mencionando-se que o tombamento do Parque se estenderia a 100 metros para dentro das águas da baía (5).
3. Há qualquer dúvida sobre o tombamento do Parque do Flamengo, aí incluída a sua área de Marina?
Até a presente data, desde o seu tombamento em 1965, nunca houve qualquer dúvida quanto tombamento do Parque do Flamengo, aí incluída a área da Marina, constituindo-se fato notório e de amplo conhecimento geral. Embora o perito do Juízo (AO 99.0022 4597-0) mencione dúvidas sobre plantas do Parque, ele o faz quanto aos equipamentos, já que menciona, explicitamente, que a “área de abrangência dos desenhos é sempre a mesma, e inclui o terminal de passageiros do aeroporto Santos Dumont ao norte, o início da praia de Botafogo ao sul, a leste limita-se com a Baía de Guanabara e a oeste com a pista da Praia do Flamengo contígua aos prédios e Avenida Rui Barbosa” (grifei).
4. Há, no processo judicial em curso, questionamentos quanto a este tombamento?
Sim. No processo judicial antes mencionado três questionamentos, a saber:
a) O levantado pelo perito do Juízo, no quesito 1, no qual é indagado se a área objeto da demanda encontra-se tombada e em que termos.
b) O levantado pela EBTE, quando diz que o ato presidencial que autoriza a cessão de área ao Município para a instalação do Complexo da Marina, teria o efeito de destombar a área cedida.
c) O argumento mencionado pela EBTE ao longo do processo, e pelo perito do Juízo no item 14 (questões da EBTE) (6), de que a área em questão, ou seja, a parte do Parque destinado à Marina, não tem valor cultural.
A questão da letra a foi respondida pelo perito do Juízo, no sentido de que a área não se encontra tombada. Apesar das considerações iniciais do perito acerca das plantas constantes do processo, este, ao final, não baseou sua resposta negativa em qualquer referência físico-territorial; pelo que, se deduz, não teve ele dúvidas quanto aos limites do que se chamou de Parque do Flamengo. O ilustre perito do Juízo, que é arquiteto (7), fundou sua resposta negativa na rápida leitura que fez do art.5º do Decreto-lei 25/37. Portanto, na interpretação que fez da leitura da lei e do processo. O art.5º refere-se a tombamento de bens públicos, que poderá se fazer de ofício – por ordem do Diretor do Iphan; mas a entidade ao qual pertencer o bem, ou sob cuja guarda este estiver, deverá ser comunicada, para fins do tombamento produzir os efeitos necessários. Compulsando o processo de tombamento, o perito arquiteto não viu senão o pedido de tombamento encaminhado pelo governador Carlos Lacerda, e não vendo a notificação à União (que chamou de co-proprietária) deduziu que, por falta desta, o tombamento não produziu efeitos, e logo a área não estava tombada.
Este lamentável equívoco de interpretação jurídica, justificável apenas por ter sido praticado por um perito arquiteto, acabou por prejudicar (por partir de um falso pressuposto) todo o laudo do perito.
Vejamos o erro:
O tombamento de bens públicos, por ato de ofício, é uma faculdade que a lei dá ao diretor do Iphan, de imposição deste destaque cultural aos bens públicos em geral. No entanto ele já não é mais praticado, já que o órgão tem optado pelo procedimento geral do art. 7º, que classifica os tombamentos em voluntários ou compulsórios, incluindo sempre a oitiva especializada do Conselho Consultivo, órgão composto de personalidades da sociedade civil, de notório conhecimento na área da cultura em geral.
O tombamento do Parque do Flamengo, poderia ter sido feito de ofício, mas não o foi. Houve a solicitação do governador, então responsável pela guarda do bem, à União, esta representada pelo Iphan – órgão da administração direta federal à época. A solicitação foi objeto de apreciação pelo Conselho Consultivo que a acolheu, realizando-se assim o tombamento voluntário previsto no art.7º do DL 25/37. Neste art.7º a previsão de notificação só tem sentido para o caso de tombamento compulsório, ou seja, do proprietário do bem impugnar o tombamento.
Ora, no caso, a União era o próprio Iphan, órgão da administração direta federal que tinha competência regular de decidir sobre o interesse federal dos bens públicos ou privados em geral. É elementar que a União não iria notificar a si própria! (8).
Quanto à notificação ao usuário, esta só caberia se não fosse o próprio usuário quem estivesse pedindo o tombamento! Portanto, é totalmente descabida a singela leitura que fez o perito arquiteto do DL 25/37 na sua aplicação ao processo do Parque do Flamengo.
Vale finalmente acrescentar que o perito arquiteto não soube distinguir validade e eficácia dos atos administrativos, querendo deduzir a inexistência, ou invalidade de um ato administrativo de interesse público, a partir da falsa premissa de seu desconhecimento, apesar desse ser ato nacionalmente notório (9), e sabido tanto por quem o praticou – a União, como por quem tem a sua guarda, o Município (10), que o solicitou (11).
d) O segundo questionamento sobre o não tombamento da área advém das afirmações da EBTE de que o ato de autorização de aforamento, expedido pelo presidente da República (12) teria tido o efeito adicional de ser também um ato de destombamento do referido bem, por ali prever uma destinação para o aforamento. Esta afirmação, embora juridicamente equivocada, é ardilosa, já que construída por advogado. Porém, qualquer neófito em Direito sabe que um dos elementos dos atos administrativos é o seu objeto – seu objeto jurídico. Por ele se identifica os seus efeitos e a sua legalidade.
O objeto jurídico de um decreto de autorização de cessão é a cessão, com seus efeitos fundiários, e por isso a legislação que rege este ato é a que está explicitada no próprio decreto 88661/79: “o decreto-lei 178 de 16 de fevereiro de 1979”. Totalmente diverso seria o objeto jurídico do ato de destombamento pelo Presidente da República, que é ato especial, fundado no decreto-lei 3866/41, para atender a “motivo de interesse público”, cujos efeitos seriam o cancelamento da proteção cultural federal sobre bens públicos ou privados; ou seja, o cancelamento de direitos constitucionais coletivos (art.216 da Constituição Federal). São dois objetos jurídicos totalmente diversos; e pretender induzir que a trivial autorização de aforamento, ainda que mencione destinações, tenha o condão de se transmutar em ato de destombamento, se não é um erro elementar de direito, só pode ser um ardiloso argumento para confundir os incautos.
e) Quanto ao valor cultural da Marina, deve-se esclarecer que, por esta não ter sido destacada do seu todo – o Parque do Flamengo por qualquer autoridade legalmente constituída para tal (13); pressupõe-se, portanto, que o tombamento do todo alcança as partes que o compõe; isto é elementar. Logo, se continuarmos a entender, conforme se fez no Direito brasileiro nos últimos 70 anos, que cabe aos técnicos do Iphan e aos membros Conselho Consultivo, nos termos do DL 25/37, atribuir este valor cultural, há de se concluir, necessariamente que o tombamento do Parque, e, consequentemente da área da Marina, continua sendo legal e legítimo. Claro que pode ter tido um erro flagrante de avaliação do governador, dos técnicos, dos conselheiros, erro não visto nestes 40 anos, e que o projeto e o Parque não tenham valor cultural. Neste caso, cabe aos técnicos aferirem; e se tiver havido desvio ou abuso de poder, cabe ao juiz decretar a nulidade do ato administrativo de tombamento do Parque. Porém, até lá, presume-se válido e legítimo o ato administrativo, sobretudo aquele que protege direitos constitucionais coletivos – direitos fundamentais de 4ª geração!
5. Se o Parque do Flamengo é tombado, a área da Marina também o é?
É evidente, já que a área da Marina, em momento algum foi desmembrada do Parque. Ela é parte integrante do Parque, assim como todos os outros equipamentos. O Parque é um todo, uno, sem o que a concepção do seu projeto, enquanto tal, perde o sentido de sua concepção. Em momento algum a área foi desmembrada, ou loteada, inclusive porque o processo de desmembramento, ou loteamento de áreas obedecem a toda uma série de exigências das leis de urbanismo, não só municipais, como também federais (14). Volto a reafirmar que a autorização de cessão, dada pelo então presidente da República (15), não tem o condão de parcelar ou lotear terras sem o devido processo legal (16).
6. O aforamento da área ao Município, com a destinação especificada de construção do complexo Marina-Rio, tem o condão de subtrair-se ao tombamento, ou isentar o projeto de conformar-se às suas diretrizes?
Obviamente que não. Diga-se que o próprio SPU, em carta dirigida ao Sr. Sérgio Meireles, diretor da Marina da Cidade Ltda (17), diz que “nada tem a opor ao projeto de ampliação da Marina da Glória, (…)”, mas que “Por outro lado, ressaltamos que a obra não poderá ser realizada antes da aprovação do projeto pela Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e demais órgãos competentes” (grifei). Ou seja, cada órgão dirá o que é cabível, no âmbito da sua competência. E há necessidade de obter autorização de todos. Já foi o tempo em que um aceno do presidente da República poderia ser tomado como uma ordem soberana, sobrepujando quaisquer interesses públicos e o devido processo legal. No caso, o pior é tomar uma mera autorização como uma outra coisa, como uma ordem, que nem foi expressa, e nem foi dada!
O pedido de área para a construção do complexo da Marina foi feito pelo então prefeito Marcos Tamoyo. O que seria este complexo ninguém sabe, mesmo porque ele não foi realizado. E agora, passados mais de 27 anos da autorização, e 22 anos da assinatura do contrato, querer ressuscitar um desejo político não realizado e tomá-lo como base jurídica para afastar uma tutela de direitos constitucionais, é, data venia, uma afronta a qualquer Estado de Direito. A não ser que, o que foi construído pelo Município antes de 1996, e que foi transferida à administração da EBTE, tenha sido o chamado Complexo da Marina-Rio.
7. Qual a situação fundiária da área da Marina?
A área da Marina é área integrante de uma gleba maior de terras, não desmembrada, que se constitui o Parque do Flamengo. O pedido de aforamento, objeto do contrato, já caducou, nos termos expressos do decreto autorizativo (18) e da cláusula 4ª do contrato de aforamento, assinado em 1984, independentemente de ato especial, já que o Município não adimpliu a destinação para a qual foi solicitado. Se não houve ato para tal, é porque não precisava (19). E se o Município detém a guarda do bem, o faz em função de sua condição de responsável pelos logradouros públicos (20) no âmbito do seu território. E tal como as praias, que não deixam de ser bens federais, a área do acrescido de marinha do Parque do Flamengo também o é, sem afastar a função do Município de conservá-las, e de ter a tutela e a fiscalização de polícia administrativa.
8. Qual a relação entre o “aforamento” e o contrato de concessão à EBTE?
Nenhuma, pode-se dizer. Primeiro porque o aforamento já não mais existe. Segundo, porque o contrato do Município com a EBTE não tem como objeto o repasse de terras, mas o uso de instalações, exploração de serviços, gestão administrativa e revitalização da Marina; ou seja, o Município não podia passar o que não tinha, e mesmo que, ad argumentandum, ainda tivesse o domínio útil da área, não podia transmití-lo a outrem sem a anuência do SPU. Só para tornar patente este aspecto, é só verificar que o Município, ao descrever a área onde se daria a gestão dos equipamentos da Marina pela EBTE, menciona uma área menor do que aquela recebida em aforamento (de 65.500 m²) (21), parte da porção maior de 105.890 m² , esta última objeto do aforamento.
9. Qual o objeto do Contrato entre o Município e a EBTE e eventuais efeitos dele decorrentes?
O seu objeto é a “concessão de uso das instalações, da exploração dos serviços com finalidade comercial e da gestão administrativa, e da revitalização do Complexo Marina-Rio” (22) (grifei). Ressalte-se que o contrato não é nem de cessão ou concessão fundiária, nem de concessão de serviços públicos, já que administrar e explorar economicamente o atracamento de barcos particulares e explorar turisticamente o ponto de passeios não se constituem serviço público. Certamente o Município, por meio da Riotur, tinha dificuldades de administrar aquela atividade específica, e por isso resolveu “privatizar” a gestão não da área, mas das instalações existentes. Todas as obrigações do contratado dizem respeito à melhoria das instalações, serviços e atividades já existentes na área e a segurança das instalações. Apenas acessoriamente se faculta ao contratado, se este quiser, fazer outro projeto visando o fomento da revitalização, desde que este projeto fosse devidamente submetido à aprovação não só do Município, mas também do Iphan (23), e demais órgãos competentes.
10. Em que o objeto do contrato importa para a Ação Ordinária e para a liminar de obras obtida pela EBTE?
Pretendeu a EBTE transformar esta faculdade, esta possibilidade de ampliação das instalações que recebeu para administrar e gerir, em cláusula obrigacional principal, para com isto justificar o pedido de ampla exploração comercial privada da Marina. No pedido de antecipação de tutela, requer que lhe seja autorizado, pelo Juízo, “executar, liminarmente, e inaudita altera parte, obras provisórias de construção, para poder desincumbir-se de suas obrigações contratuais”. Ora, a simples leitura do contrato esclarece que as obras necessárias e úteis de suas obrigações jamais foram impedidas. Porém, esta liminar está sendo compreendida, e usada, não para realizar suas obrigações contratuais, mas para burlar a necessária oitiva do Iphan, com a finalidade de fazer todo um novo projeto, enorme, diferente, fechado, com ampla privatização e comercialização de espaços públicos, e fechamento de acesso à área da Marina. A liminar judicial está sendo usada não para cumprir o contrato, mas para descumpri-lo. Como se o Juízo singular tivesse dado à EBTE uma carta branca para ali fazer as obras que aprouver. Após a liminar judicial, não há mais qualquer controle sobre o que está sendo executado, pela EBTE, no Parque público.
11. Há direitos construtivos garantidos à EBTE na área, por contrato ou por força de lei?
Não há qualquer direito de construir que possa ser inferido por força do contrato de gestão e administração. Já mencionei que o contrato não diz respeito à área, mas às instalações. Ademais, quando se fala em direito de construir (24), este só é garantido como forma de uso de propriedades particulares. No caso, trata-se de bem público, afetado ao uso comum do povo. Estes são, por natureza, não edificáveis. Talvez, por um ato falho, a EBTE já se tenha entendido como “proprietária” da área, e como tal, com os direitos de qualquer proprietário privado: de construir, e de explorar economicamente “sua propriedade”.
12. Qual o regime jurídico do Parque do Flamengo?
O Parque é um bem público, afetado ao uso comum do povo em toda a sua extensão, há 40 anos. Não houve qualquer ato que o desafetasse deste uso comum, que o parcelasse, ou que retirasse a sua proteção como bem cultural de paisagem de excepcional beleza. Portanto o regime jurídico que o rege é o de direito público, e com isto se pretende garantir o amplo e irrestrito acesso às suas áreas, a sua integridade como parque jardim, e a permanência e conservação de paisagem cultural de excepcional valor. Os usos especiais, como o MAM, o do Restaurante Rio (hoje Porcão-Rio), são espaços edificados previstos no Projeto. Portanto, não há como se falar em edificação de outros espaços, e fechamento de acessos, sem a desafetação de áreas do uso comum para o uso especial. E isto pode ser contrário à essência do Projeto do Parque, que lhe justificou o tombamento (25); e neste sentido foi que o Conselho Consultivo do Iphan entendeu que a área do Parque, porque é parque, é não edificável. Porém, esta não é somente uma posição do Conselho Consultivo do Iphan; no âmbito do Município, a sua Lei Orgânica (26), no seu art. 385 proíbe a desafetação de áreas de parques, sem autorização da Câmara Municipal!
13. Um projeto de construção de áreas privadas de comércio seria juridicamente viável à luz da legislação municipal na área da Marina?
Não vemos como, sem desafetar a área do uso comum do povo, permitir o seu uso especial. E esta desafetação, como vimos, está proibida pela Lei Maior do Município do Rio de Janeiro. Ademais, como licenciar obras se não há lote? Como autorizar construção, se para a área não há fixados, pela legislação municipal, parâmetros urbanísticos de zoneamento de uso ou gabarito, já que a área é prevista como Parque público? Fico imaginando qual teria sido a base legal para uma eventual aprovação do projeto pelo Município, e para a respectiva licença de obras. Será que ela foi deferida? Se o foi, pesquisar sua base legal é essencial, já que há fortes indícios de sua impossibilidade jurídica, sobretudo à luz da mencionada Lei Orgânica do Município (27).
14. Quais então foram os fundamentos das sentenças de 1ª e 2ª instâncias, que deram a antecipação de tutela à EBTE?
Há, no site da Prefeitura – Procuradoria do Município, a íntegra do texto da Lei Orgânica. Na 1ª instância, o Juízo singular, infelizmente, não motivou, legalmente, sua decisão. Apenas, no final do relatório, afirmou o fato do Conselho Consultivo ter “decidido não examinar o projeto”, e assim teria praticado um “ato ilegal”. Na decisão afirma que o Juiz pode examinar o mérito do ato administrativo, e menciona, exemplificativamente, para justificar sua decisão, dois ou três exemplos relatados em um artigo de jornal, dentre esses, a pirâmide no Louvre.
Infelizmente, a decisão parte de pressuposto falso, qual seja, a de que não teria havido exame do projeto. Houve. E à exaustão. A frase final colocada, à esmo, nem mesmo consegue resumir todos os argumentos. É evidente que, fosse este o caso, estar-se-ia por desmerecer a lucidez dos membros do Conselho Consultivo do Iphan, nomeados por seu reconhecido saber na área cultural. A falta de fundamento legal da decisão judicial impede que se compreenda melhor porque a mesma foi dada. A decisão de 2ª instância, que confirma a primeira, não foi mais feliz. Fundamenta suas razões em um trecho o Relatório de Impacto Ambiental que, ao comentar aspectos da área, diz que o projeto não acarretará nenhum dano ambiental, e que o projeto é ótimo (…). Ora, o relatório de impacto ambiental, encomendado e pago pelos interessados, é uma exigência da lei ambiental a ser examinado pelas autoridades ambientais competentes! Se ele bastasse por si, para que então submetê-lo às autoridades? Ademais, o relatório se relaciona com as exigências da licença ambiental, regida pela legislação ambiental específica, controlada pelos órgãos pertencentes ao Sisnama, sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente. A licença ambiental não substitui, nem dispensa a autorização da autoridade cultural, no caso a autorização do Iphan, do Ministério da Cultura. Confundir ou misturar as duas autorizações pode trazer, como traz, no caso, prejuízos irreparáveis para um ou para outro interesse público: o ambiental ou o cultural, interesses esses protegidos por legislações diversas, e por capítulos também diversos da Constituição Federal!
Conclusão:
O exame do caso nos faz pensar o quanto bens e riquezas de interesse público podem se perder, ou serem transformadas em um enorme imbróglio, só por força de argumentações equivocadas, preconceitos históricos, induções maliciosas, e uma confusão, bem orquestrada, de conceitos jurídicos.
Penso ser este o caso da área de Marina, no Parque do Flamengo. Se superados os equívocos jurídicos, resta um caso simples: basta verificar, pelos canais competentes para tal, se o Parque do Flamengo continua tendo valor cultural de paisagem de excepcional beleza. Se o projeto do Parque, idealizado por grupo de arquitetos e artistas continua tendo valor cultural para o País. Se as respostas a estas perguntas forem positivas, saber então qual a essência, qual o conteúdo deste projeto. Responder a estas perguntas é essencial para saber se devemos destombar o Parque ou não. Até porque, recentemente, este tombamento foi preparado para ser encaminhado à candidatura de patrimônio mundial. Ora, se não tiver valor para o Brasil, quiçá para a humanidade! Mas, se for entendido que Parque merece proteção por valor cultural, a legitimidade e juridicidade dos procedimentos de sua proteção encontram-se acima respondidos.
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Notas:
1. Fundamento: Constituição Federal art.30, inc.IX e Decreto-lei 25/37 art.17 e par. único.
2. Inscrição no Livro de Tombo Paisagístico, em 28 de julho de 1965.
3. Fundamento: Lei 9760/47, art.3º.
4. Hoje o aterro talvez se constituísse um crime ecológico. Contudo, o domínio público afetado ao uso comum do povo, como Parque público, pode minimizar os efeitos deletérios do enorme aterro de uma das baías mais bonitas do mundo!
5. Na resposta ao item 2, do laudo do perito do Juízo, quando é indagado se “houve manifestação expressa do Conselho Consultivo do Iphan quando do tombamento do Parque do Flamengo no sentido de estabelecer determinações específicas para a utilização da área, em especial para novas construções no local”, esse responde que: “Sim, consta da ata da 44ª reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que aprovou o tombamento do Parque do Flamengo, a intenção de preservar o conjunto tombado (…) ” e segue mencionando o trecho da referida ata: “compreende o tombamento não só os terrenos e construções representados na planta anexa ao processo nº 748-T-64, mas também a área marítima até cem metros da praia, em toda a extensão do parque, afim de evitar ali construções que possam sacrificar a beleza do conjunto tombado.” Profético?!
6. Quesito: “Existe na área algum bem cultural, construção ou patrimônio que tenha valor arquitetônico, histórico ou cultural que mereça ser preservado ou tombado? Resposta: Não, a área objeto desta Ação Ordinária está ocupada pela Marina da Glória desde Março de 1979, devendo apenas ser considerada sua contigüidade ao Parque do Flamengo, tombado como conjunto desde 1965” (grifo no original).
7. O perito do Juízo foi o Arquiteto Luis Cláudio de Paiva Franco, Crea 34.478-D RJ.
8. E nem ao Serviço do Patrimônio da União (SPU), também órgão da Administração Direta, com outra competência diferenciada, qual seja, a da administração dos bens públicos federais em geral, quando estes não tenham sido cedidos à outras pessoas públicas ou privadas.
9. Houve, à época da inauguração do Parque já tombado, filmes e reportagens nacionalmente divulgadas, presentes autoridades de todos os níveis da Nação.
10. O Município é o sucessor do Estado da Guanabara na guarda e administração dos logradouros e parques públicos.
11. O conhecimento do Município do tombamento do Parque, aí incluída a área da Marina, é explicitado na cláusula 1.5.1 do contrato administrativo de concessão de uso das instalações e gestão administrativa da área da Marina que diz: “Poderá o contratado, querendo, elaborar projeto arquitetônico e urbanístico, devidamente acompanhado do respectivo estudo de viabilidade econômica, a ser submetido à aprovação do Município, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (…) e dos demais órgãos competentes, para os fins do disposto no item 3.1.” (este diz respeito à exploração econômica, pelo concessionário, dos espaços cedidos).
12. Decreto 83.661/79 no seu art.1º, simplesmente diz que: “Fica autorizado o SPU a promover a cessão, sob o regime de aforamento, ao Município do Rio de Janeiro, (…) a área de 105.890 m² , situada no Parque do Flamengo (…)”. No art. 2ª diz que a área destina-se à construção, pelo cessionário, do complexo Marina-Rio, tornando-se nula, “independente de ato especial” se não o fizer no prazo de 2 anos a contar da assinatura do contrato de cessão, foi assinado em 1984. Portanto, encontra-se vencido.
13. A autorização de aforamento da área da Marina que, como disse, em nada interfere na tutela dos direitos culturais coletivos, materializados pelo tombamento, é mencionada como integrante do Parque.
14. No caso, a lei federal é a 6766/79.
15. Na época, o general Figueiredo.
16. Nem esta foi a intenção do ato, mas tão somente autorizar a cessão de parte da área.
17. A carta data de 14 de Abril de 1999 – Ofício nº 233/DPU/Gab -RJ, firmada pelo Delegado Elcio do Couto e Silva, fls.310 da Ação Ordinária.
18. Decreto 83861/79 art.2º.
19. E a falta de cancelamento formal junto ao SPU não ressuscita um ato administrativo. Infelizmente, estas a atualização das informações não são a prática nas nossas repartições públicas. Mas este erro (o da não atualização) também não pode sugerir o descumprimento dos termos da autorização que lhe deu origem, e do contrato que o materializou.
20. Por logradouros públicos entende-se ruas, praças, praias e demais área de uso comum do povo.
21. Item 2.1.2 do Edital de Concorrência CLP/Riotur nº002/96.
22. Ver item 2.1.1 do Edital mencionado.
23. O Iphan é mencionado explicitamente no contrato entre o Município e a EBTE.
24. Mencionado pela EBTE na sua petição.
25. A motivação deste ato administrativo.
26. Lei Complementar nº1/1990.
27. Não é nosso objetivo, neste parecer, examinar o caso à luz da legislação municipal. Ainda assim merecem destaque as diretrizes municipais para proteção do meio ambiente, contidas no capítulo da Lei Orgânica. Veja se, especialmente, os art.462, inc.III, art.463, inc.IX, e especialmente o art.467 (que não permite sequer o licenciamento de engenhos publicitários em áreas verdes, praias, lagos, (…) praças, curvas de logradouros (…), e o art. 471, que considera como área de relevante interesse ecológico para fins de proteção, visando a restauração e conservação: I – os sítios e acidentes naturais adequados ao lazer, II – a Baía da Guanabara (…). Parece patente que qualquer projeto de edificação de áreas comerciais fechadas, estacionamento, etc, nestes sítios públicos de lazer afrontam, diretamente, as diretrizes contidas na Lei Maior do Município.
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Interessado: Comissão Especial do Instituto de Arquitetos do Brasil/ Departamento do Rio de Janeiro (IAB-RJ) para análise do projeto de revitalização da Marina da Glória