Patrimônio Cultural no Rio: caranguejando…

Nesta quinta-feira estava feliz. Ia, finalmente, escrever um blog elogiando uma ação do governo municipal em prol do patrimônio cultural da Cidade. Mas, no final da tarde, a confirmação do anúncio da venda das ruínas do ex-Hotel Glória me fez desistir de um artigo só de engrandecimentos.

Em matéria de preservação do patrimônio cultural da cidade é um prá frente e dois prá trás. Caranguejando e olhe lá. 

Vejamos:

No caso do Hotel Glória, cuja devastação foi amplamente comentada por este blog (1 e 2), a notícia da venda do que é hoje é a casca, o destroço daquele que foi um símbolo da hotelaria carioca, significa a derrota antecipada do ufanismo dos investimentos para a Copa.

O hotel, construído nos idos de 1922, estava protegido pela lei municipal que preserva todos os imóveis edificados antes de 1938. E dizer que ele não tem valor para a história da hotelaria do Rio é ignorar a história da cidade.

O Instituto da (des) preservação cultural do Rio autorizou a sua total e absoluta descaracterização espacial, o desmonte do morro do Outeiro da Glória, a demolição do Teatro Glória, a destruição do seu mobiliário e dos seus bens artísticos integrados.  

Tudo em prol dos quartos classe “AAA” de hotelaria, com dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que não irá acontecer nem para o Papa, nem para a Copa, quiçá para as Olimpíadas…. Bolsos ricos, mentalidades paupérrimas.

Bola fora

Ainda nesta semana, e quase na mesma linha ufanista, houve um descosturado decreto do prefeito que “Reconhece os gols do Zico no Maracanã como bem de natureza imaterial. Patrimônio imaterial do Rio”  (decreto nº 37234/2013)

É claro que este decreto não declinou os fundamentos de tal decisão, nem seu processo administrativo.Quem assinaria tal coisa, senão o alcaide?

Evidentemente que o Estádio Mário Filho pode ser totalmente descaracterizado; pode-se demolir, com o destombamento de próprio punho do “prefeito olímpico”, o Complexo Esportivo do Maracanã – o Estádio Célio de Barros e o Parque Aquático Júlio Delamare – , que o art.75 do ADCT da Lei Orgânica*1 manda incorporar ao patrimônio do Município

A proposta de demolição dos Estádios Célio de Barros (pistas de atletismo) e do Parque Aquático Júlio Delamare foi feita nos estudos de viabilidade realizados pelo mesmo grupo econômico X que promoveu a ruína do simbólico Hotel Glória, e que agora mostra-se incapaz de prosseguir com a empreitada, apesar de todo o dinheiro público captado.  Quem confia nisso?  

Por que confia? Qualquer cidadão, com razoável discernimento confiaria nos estudos de um grupo que está prestes a não salvar a si mesmo? Por que o prefeito destomba, não cumpre o art.75 da LOM, compactua e permite?

Ainda bem que os gols do Zico são “bens” imateriais, pois se fossem materiais, se fossem terrenos públicos, seriam destombados…

Bola dentro

Nesse ninho de desconsideração pelo patrimônio público cultural da cidade, surge o filho bom: o decreto nº 37273/2013 que “Cria o Sítio Cultural da Rua da Carioca, tomba os imóveis que menciona, e dá outras “.  

Esse decreto inova na tentativa de proteger atividades comerciais tradicionais na Rua da Carioca, inscrevendo-as em livro próprio do patrimônio imaterial.

Neste decreto há, como se deve fazer, a menção ao processo administrativo onde os estudos técnicos devem ter sido feitos. Tudo comme il faut.

O principal efeito deste último decreto está em seu art.5º, que condiciona novos licenciamentos de uso nos prédios inscritos à prévia análise do órgão municipal de (des)proteção cultural do Rio.  

Aí que mora o perigo, já que pelo que se tem visto e sentido, a direção do órgão tem sido a grande aliada das demolições autorizadas na Cidade.

Mas, verdade seja reconhecida: o decreto nº 37273 é bom e criativo.  

Esperamos que na prática sua teoria não seja outra…

Lei Orgânica do MRJ: art. 75:

Art. 75 – O Município adotará os procedimentos cabíveis, por via administrativa ou, se necessário, judicial, para reintegrar a seu patrimônio o Teatro Municipal, o Estádio Mário Filho, o Estádio Gilberto Cardoso, o Estádio Célio de Barros e o Estádio de Remo da Lagoa

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8 Resultados

  1. Sonia Rabello disse:

    Júlio: vc tem toda razão. Não sei se este registro produzirá os efeitos pretendidos, pontualmente. O que é eficaz é uma política de médio e longo prazo, que evite a expulsão, crie incentivos concretos a este patrimônio. E, isto não tem. Obrigada pelos seus comentários.

    Obrigada, Lilian Barreto, pelo seu apoio de sempre.
    Abraço, SR

  2. Sem dúvida, sou favorável a manutenção das atividades tradicionais. São tão importantes para a preservação da memória coletiva quanto os aspectos físicos normalmente protegidos pelo instrumento do tombamento. A minha dúvida é se registrando, conseguiríamos manter as atividades em funcionamento. Elas estão intimamente correlacionadas com a vitalidade e dinâmica urbanas, que no caso do Centro, vem sendo esvaziada desde o início do século XX pelos motivos expostos na minha colocação anterior. O registro deveria vir acompanhado de medidas concretas para a preservação da atividade. A política urbana do centro e de toda a cidade tem que ser revista. Mecanismos devem ser desenvolvidos para coibir as ações especulativas do mercado imobiliário que se dirige para os vetores de expansão urbana que vem esvaziando o Centro a muito tempo. Da mesma forma, parte das atividades deve se atualizar em função dos novos hábitos e costumes. Entretanto sem comprometer a autenticidade e integridade do bem registrado. E tem também alguns casos que deixam de ter sentido em função da mudança da forma de se viver. O hábito simplesmente deixa de existir, espontaneamente. Claro que sabemos de situações em que processo é artificialmente induzido pelos mecanismos especulativos mencionados. Este tema é bastante complexo e demanda uma discussão maior. A Confeitaria Colombo, por exemplo não foi registrada. Teve seu momento de crise e hoje está bastante ativa. Mas, ainda te pergunto sobre a legalidade de se impor restrições sobre o direito de propriedade, levando-se em consideração a função social desta mesma propriedade.

  3. Caríssima Sonia,
    Mais uma vez quero parabenizá-la pelo excelente artigo “Patrimônio Cultural no Rio: caranguejando”… Cada vez
    mais ficamos acéfalos de dirigentes que respeitem e preservem nossos patrimônios.
    Beijo
    Lilian Barretto

  4. Sonia Rabello disse:

    Caro Júlio Sampaio: de fato, sempre defendi (e continuo defendendo) a absoluta impropriedade de se usar o instrumento jurídico do tombamento para se preservar usos. Contudo, quando falo que o decreto do sítio da rua da Carioca é criativo o motivo se justifica porque: ele não usa o tombamento, mas inscreve num livro criado – o de atividades notáveis – patrimônio imaterial, por meio do registro (não do tombamento). Ora, o efeito se dará na permissão, ou não, da licença para outro uso. O fato de não usar o tombamento é bom. Mas, se este efeito jurídico do registro prosperará, ah, isto é outra história. Só o Judiciário dirá. De qualquer forma, a discussão é boa e lona, e, não desvirtua o tombamento.

  5. Julio Sampaio disse:

    A conservação de áreas urbanas, de acordo com a literatura especializada nesta questão, se assenta num tripé físico, social e econômico. A dimensão material engloba as edificações, mobiliário urbano, espaços públicos, etc. A social, correlaciona-se com quem vive nestes locais e a econômica, está ligada às atividades que sustentam as duas primeiras esferas citadas. As ações humanas do âmbito econômico também são patrimônio. Personalizam e dão identidade a determinadas localidades, apesar do caso específico do Centro do Rio estar na condição de subutilização a cerca de 110 anos por conta da política urbana municipal, da ação do mercado imobiliário na cidade e de determinadas posturas dos usuários da área. Estudei este tema na minha tese de doutorado e felizmente começo a ver algo neste sentido acontecer, mas ainda no campo da retórica. Sabemos muito bem que não se revitaliza áreas urbanas por decretos. Porém, tendo em vista o conteúdo da legislação em tela, como se processa a questão legal da proteção das atividades econômicas listadas como patrimônio cultural neste decreto da Rua da Carioca? Lembro, se não me engano, no seu livro “O Estado na Preservação de Bens Culturais”, que você levantava alguns questionamentos sobre o instrumento de Declaração de Interesse Cultural que poderia ferir o usufruto das propriedades pelos seus donos, apesar da constituição brasileira levar em consideração também a função social da propriedade privada.

  6. Guilherme: respondo-lhe com os argumentos da Carla. Uma e outra opinião são linhas de convicções. Há quem acredite que a qualidade da vida se faz com o crescimento “substitutivo” – aquele que acontece pela demolição do já criado, substituindo-o pelo novo. Eu não acredito nisto. Este foi um pensamento dominante no século passado, mas hoje vemos que ele acarretou o saturação dos recursos naturais e ambientais do planeta, aí incluído as cidades. É a produção antropofágica – a que consome a si mesma, inclusive as suas riquezas culturais, que cumprem um papel de referência psico-social para a sociedade. Tenho outra ideologia. Acho que no século XXI é o século da sustentabilidade, onde a produção e o crescimento se faz sem destruição da riqueza social. Isto é possível, e isto, para mim, é desenvolvimento.
    obrigada pelos comentários.

  7. Patrimônio cultural não deve se submeter aos interesses econômicos. Existem critérios, legislações, cartas patrimoniais que foram elaboradas de forma interdisciplinar para “proteger” o patrimônio sobre a perspectiva do pertencimento coletivo. Poder público aliado ao interesse empresarial empobrece a alma de uma cidade. Olha o exemplo do Hotel Glória. Investimento não pode ser encarado sobre o viés de que somente umas das partes terá vantagens e o outro acaba sendo lesado. Patrimônio cultural não pode ser moeda de troca. Essa é a minha opinião. Crescimento econômico não pode estar no lado oposto do patrimônio cultural como se isso fosse algo natural.

  8. Guilherme Novaes Moraes disse:

    Discernimento com os atos de Tombamento.

    Olá! Sonia,

    Tenho a honra de submeter o meu seguinte pensamento para fins de debate, já pedindo vênia para descordar de alguns dos seus argumentos sobres os quais tenho grande respeito.
    Atenciosamente,
    Guilherme.

    O crescimento econômico das grandes metrópoles muitas vezes se depara com entraves legislativos do próprio poder público, e um desses entraves são os tombamentos.
    O tombamento de prédios e espaços públicos é algo sem dúvidas muito importante, mas que o seu emprego deve ser muito bem e previamente estudado, principalmente do ponto de vista da técnica legislativa utilizada. É muito comum nos depararmos com leis genéricas que protegem (tombam) todas as edificações a partir de uma determinada data, a exemplo da Cidade do Rio de Janeiro que possui uma legislação que protege todos os prédios a parti de 1938, e Cabo Frio que protege os prédios com mais de 50 anos.
    Mas como então conciliar os dois interesses públicos eminentemente conflitantes: interesse pela preservação do patrimônio histórico e artístico urbano versus o interesse pelo crescimento econômico das cidades geograficamente limitadas.
    Não é fácil chegar a um consenso, mas temos que eliminar os muitos pontos fora da curva; um deles é o de que tudo que é antigo tem que ser preservado. Se fosse assim, imaginem a Barra daqui a 70 anos, todos os prédios construídos na década de 2000 tenderiam a ser tombados. Acredito que o critério não seja este.
    Em contrapartida eu tenho a convicção de algumas edificações emblemáticas serão protegidas para as gerações futuras como ícones arquitetônico de seu tempo.
    Mas temos que considerar o seguinte: as gerações futuras terão necessidades próprias e que só elas saberão o que é prioritário,e por isso não podemos condená-las limitando à indisponibilidade do espaço público declarando que tudo que é antigo deve ser perpetuado pelo tombamento.
    É claro que o ato de tombamento pode ser revisto pelo poder público, mas isto é um processo delicado e difícil de ser revisto pela necessidade de conciliação política das vontades.
    O instituto do tombamento, portanto, acredito que tenha que ser rediscutido para uma seguinte hipótese: os edifícios e espaços públicos devem ser tombados até que sejam adequadamente registrados, documentados e estudados, por um período de tempo razoável, para que as gerações futuras possam ter acesso ao patrimônio histórico pelo registro pelo documento.
    È fundamental que o ato de tombamento tenha doravante um termo inicial e um termo final, que possa ser prorrogado tantas vezes as gerações futuras decidam, mas sem que se engesse o instituto.
    A final, o que cumpre melhor sua função social, o patrimônio histórico ou o a renovação edilícia do espaço urbano? É impossível responder de forma genérica e abstrata, mas é possível perceber que a renovação do espaço urbano aquece a economia, gerando empregos diretos e indiretos.
    Fica então a mensagem para um debate sobre o tema em que lança uma proposta: que o ato de tombamento tenha termo inicial e final em que perderá sua eficácia (por exemplo: vinte anos) cabendo às gerações futuras renová-lo ou não.

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