“Patrimônio do Rio: proteção e retrocesso”

Neste artigo, a arquiteta Andréa Redondo, fala sobre o uso dos eventos internacionais a caminho como justificativa de leis urbanísticas de estímulo à expansão e renovação urbanas, “algumas equivocadas”, e detalha  os lamentáveis exemplos recentes em terras cariocas que envolvem os critérios de preservação do patrimônio histórico e cultural.

“O processo contínuo de transformação das cidades, parte da dinâmica urbana, está cada vez mais rápido. Hoje o caso do Rio de Janeiro é excepcional: os eventos internacionais a caminho, que trouxeram recursos financeiros e desenvolvimento econômico, têm sido invocados para justificar leis urbanísticas de estímulo à expansão e renovação urbanas, algumas equivocadas.

Por sua vez, os critérios de preservação do patrimônio histórico e cultural mudaram ao longo do século 20. Foram aperfeiçoados, pode-se dizer. Aos conceitos mundiais sobre o tombamento de bens culturais de valor individual somou-se a proteção de conjuntos urbanos. Identidade do lugar, ambiência urbana e paisagística, proteção do meio ambiente, referências e valores afetivos –esses quesitos foram alçados a um novo patamar de importância.

No Rio, esse processo começou em 1984, com a lei que preservou um casario do centro. Foi seguida em 1988 pela primeira Área de Proteção do Patrimônio Cultural (Apac), que garantiu a permanência de lugares tradicionais nos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, joias escondidas no centro e na zona portuária, hoje redescobertas pelos cariocas.

Inseridos no Plano Diretor de 1992, os preceitos geraram mais de 30 Apacs. Preservou-se construções e paisagens urbanas que constituem patrimônio cultural carioca, referências vivas da memória da cidade e de seus moradores. Leis indiscriminadas para incentivo ao mercado imobiliário passaram a ser substituídas por normas que visavam o equilíbrio entre a cidade consolidada e o novo.

Identificar lugares a ser salvaguardados e liberar outros para a renovação urbana são os dois lados da cidade desejável, boa para moradores e atraente para investidores. É tarefa árdua e constante. Tem sido incentivada e respeitada por várias administrações.

Infelizmente, exemplos recentes em terras cariocas opostos àquela política são lamentáveis.

O antigo Museu do Índio, ao lado do Maracanã, foi considerado bem de valor cultural pelo órgão municipal de tutela do patrimônio. Mas o prefeito autorizou a demolição do prédio, a pedido do governador. Este recuou da decisão após manifestações contrárias de diversos segmentos da sociedade. Por enquanto.

Parte significativa da área de proteção ambiental do Parque Natural Municipal de Marapendi foi eliminada para dar lugar a um campo de golfe dito “olímpico”, manobra complexa que ainda garantiu aumento do gabarito em área vizinha. Os protestos não adiantaram e a lei foi sancionada.

A polêmica do momento é a proposta absurda para construção de shopping e centro de convenções na área da marina pública do Rio. A Marina da Glória é um equipamento urbano municipal. Pertence ao parque do Flamengo, bem tombado federal e municipal, cobiçado pela iniciativa privada.

O concessionário atual –grupo EBX, encarregado de geri-lo e prestar serviços– pretende erguer um empreendimento comercial de grande porte. Tem o apoio do prefeito e do Iphan nacional, órgão responsável pela tutela que deveria atuar como guardião dos critérios do tombamento, ora desprezados.

Mas a prefeitura carece de amparo legal para aprovar o pleito, mesmo com a inexplicável concordância do Iphan, não mandatória. No parque do Flamengo, área pública `non-aedificandi´ e bem de uso comum do povo, são permitidos apenas os prédios que constam no plano original dos anos 1960 e os usos respectivos, todos de natureza pública.

O projeto é ilegal. Não existe discricionariedade fora da lei.”

Andréa Redondo

 

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