Petulância na liquidação de terras públicas sob o pretexto do hipotético Autódromo

O Prefeito da Cidade do Rio enviou, nesta semana, para a Câmara de Vereadores o PLC  135/2019 que dá mais um passo para tentar viabilizar a privatização comercial de 790.156 mil metros quadrados de terrenos públicos – 80 hectares de terra urbana – para um único dono: a empresa comercial Rio MotorPark Holding S.A. 

Talvez o hipotético autódromo não seja mesmo nunca construído. Mas não importa, pois até que isso seja visualizado e visibilizado o negócio da privatização das terras públicas – com a necessária matança geral da Mata Atlântica no local – já terá sido realizado.

As terras, no total de cerca de 200 hectares, são da União e, até o momento, não foram transferidas ao Município do Rio, conforme está demonstrado no Processo Judicial da 10ª Vara Federal (Ação Civil Pública n° 5031736-15.2019.4.02.5101/RJ), que determinou, previamente à assinatura do contrato, que seja feito o Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA).

A decisão de suspensão da assinatura do contrato, até que o EIA-RIMA demonstre a viabilidade do empreendimento, inclusive com a finalização da descontaminação da área, foi determinada pela 2ª Turma do Tribunal Regional Federal, cujo trecho da decisão, de leitura imprescindível, se encontra ao final deste blog.

Detalhe importante: conforme mencionado na ação judicial, é provável o Estudo de Impacto Ambiental venha a demonstrar que seja impossível construir ali um autódromo por ser área de Mata Atlântica; e que a área adjacente, também da União, e também sob a administração do Exército, seja a área mais adequada.

Então, se o EIA-RIMA apontar a inviabilidade da construção do hipotético Autódromo na área objeto do projeto de lei, por que aprovar, em regime de urgência, a doação daquela área em contrapartida, sem o EIA-RIMA, e ainda sem a transferência da mesma da União ao Município? Por que não esperar para saber qual a área aonde um autódromo poderia ser feito, sem a matança de cerca de 180 mil árvores?

A resposta talvez esteja no art. 2º do referido projeto de lei 135, que diz:

art.2º A responsabilidade pela proteção e manutenção dos imóveis descritos no Anexo I, [ou seja, dos 200 hectares de terra em Deodoro], passará a correr, a partir da assinatura do contrato, por conta da concessionária [Rio MotorPark], a quem cabe, exclusivamente, todos os ônus [e os bônus]que recaiam ou venham a recair sobre os mesmos.

Ou seja, os vereadores que aprovarem este projeto de lei estarão compactuando com o Prefeito em dar a posse e eventualmente o registro imobiliário de 200 hectares de terras públicas à uma empresa privada, sob a promessa de que ali esta irá, quem sabe um dia, construir, em parte da área, um hipotético autódromo. E, na outra metade, obviamente, construirá seus negócios imobiliários privados, inclusive com venda a terceiros, o que, com o tempo, tornará o negócio irreversível, mesmo que o hipotético autódromo jamais saia do papel, ou seja, paralisado no meio. Alguém tem alguma dúvida de que isto vá acontecer?

Após todos os desastres urbanísticos e econômicos havidos com os contratos de PPPs do Maracanã, do Parque Olímpico da Barra (abandonado), do Porto (falido), do VLT (questionado), só muita desfaçatez ou ignorância fingir que este negócio imobiliário é de interesse público, ainda mais sem qualquer garantia de viabilidade e coerência financeira (conforme determinou o voto do Tribunal de Contas do MRJ), ou qualquer projeto urbanístico responsável para o local.

E, para discutir isso bem rapidamente, foi convocada para esta quinta-feira, dia 10 de outubro, reunião de todas as Comissões parlamentares da Casa, para darem seu “parecer”, às pressas, sobre o projeto.

Vamos ver como votam, e por que votam cada um dos ilustres vereadores da Cidade, e quais os que estarão de mãos dadas com o Prefeito neste mega negócio imobiliário, mas que envolve a destruição do patrimônio ambiental da Cidade: a Mata Atlântica de Deodoro. 

Trechos do voto decisão do Desembargador Ricardo Perlingero, da 2ª Turma do Tribunal Regional Eleitoral

Outrossim, a 7a IGE [Tribunal de Contas] reitera sua posição quanto à necessidade da promulgação de lei autorizando a contraprestação da Administração Pública sob forma de entrega de imóveis para a futura Concessionária, submetendo ao Plenário a possibilidade de o cumprimento de tal exigência ocorra apenas após a realização da licitação, como condição precedente à assinatura do contrato, e da falta de um orçamento estimativo detalhado para permitir uma avaliação de coerência entre os valores lançados e o anteprojeto proposto. (grifei)

Dessa forma, existente fumus boni iuris a embasar a suspensão de contratação, em razão de indícios de ilegalidade quando da abertura e realização do processo licitatório que o antecedeu.

Quanto ao requisito de periculum in mora, destaca-se que se trata de Floresta de importante valor ambiental como consta no próprio edital (Evento 1 – doc. ANEXO13):

2.2. DIAGNÓSTICO E ANÁLISE AMBIENTAL DA ÁREA DE INTERESSE […]

2.2.4 Cobertura Vegetal A área em questão está inserida no Bioma Mata Atlântica e regida pela Lei 11428/2006, que dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica. […] De acordo com o Relatório de Avaliação da Vegetação do Fragmento Florestal do Morro do Camboatá elaborado pelos pesquisadores do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o remanescente de Mata Atlântica presente na área possui grande importância para a cidade do Rio de Janeiro […]. […] Cobertura vegetal florestal que representa 57% da área total, a presença de espécies de flora e fauna ameaçadas de extinção e a presença de dois corpos hídricos cortando a área; […]

Tais informações ofertadas no próprio instrumento convocatório indicariam, per se, a inviabilidade ambiental do empreendimento ante aos arts. 11, 12 e 14 da Lei11428/2006 da Mata Atlântica, como citado pelos agravantes (grifei). Reporto-me à decisão inicial do Juízo a quo que deferiu a liminar, concedendo a tutela de urgência (Evento 20, doc. DESPADEC1), quando asseverou não ser proporcional a realização de empreendimentos públicos em prejuízo do direito fundamental e difuso ao Meio Ambiente equilibrado.(grifei) Nesse ponto, adoto como razões de decidir os termos exarados pelo Juízo a quo (Evento 20): […]

Dessarte, resta provável a degradação ao Meio Ambiente a justificar a realização de EIA/RIMA antes da licitação da PPP em questão. Ressalte-se, ainda, que o próprio tratamento das responsabilidades por eventual impossibilidade de realização do objeto da PPP em questão pode recair sobre o próprio ente federativo, em razão de lacunas e contradições apontadas nos itens 32.5.5.1 e 32.5.5.2, como bem apontou o parquet federal em sua inicial. (grifei)

[…] O periculum in mora também resta demonstrado pelo provável prejuízo ambiental decorrente do iminente início das atividades relativas ao contrato vergastado, mormente em razão da necessidade de descontaminação da área constante dos elementos de projeto básico e do próprio risco ao Meio Ambiente decorrente de início de empreendimento desse jaez sem a realização de prévio EIA e RIMA, os quais podem apontar para alternativas locacionais, conforme art. 6o da Resolução 237/1997 do CONAMA. Além disso, a suspensão da contratação do objeto da licitação em questão tem o condão de evitar danos não só ao meio ambiente, mas também prejuízos econômicos ao próprio ente federativo, caso venha a ser reconhecida a inviabilidade do empreendimento. (grifei)

Tais considerações demonstram o provável periculum in mora. […]

O perigo de dano se consubstancia, portanto, no prosseguimento de contratação que demonstra estar eivada de vícios de ilegalidade, os quais maculam o próprio procedimento de licenciamento ambiental a ser supostamente realizado em fase de execução contratual. Ainda que não se tenha notícia de seu início, atenta-se ao alto potencial ofensivo ao meio ambiente a utilização de diretrizes (Instrução Técnica CEAM/DILAM no 10/2013) para base do EIA/RIMA que foram suspensas em outro processo judicial e ao risco de se iniciar processo de descontaminação do terreno que, por si só, já oferece risco de degradação ao meio ambiente, como demonstrado na decisão do Juízo a quo.

Impõe-se, por conseguinte, a concessão de efeito suspensivo ao agravo de instrumento, reformando a decisão interlocutória proferida no Evento 36 dos autos originários que revogou a liminar, mantendo-se íntegra a tutela de urgência concedida no Evento 20, para que seja suspensa a contratação objeto da concorrência no 01/2018 – processo no 04/550.139/2017, até que o EIA-RIMA seja apresentado e aprovado pelo órgão ambiental licenciador e seja expedida licença prévia atestando a viabilidade ambiental do empreendimento no local, visto não ter sido atendida, ao menos em sede de cognição sumária, o requisito do art. 10 da Lei no 11079/2004.

Quanto à petição de RIO MOTORPARK HOLDING S.A. (Evento 4), agravada, requerendo que (i) seja determinada a retirada de pauta do agravo de instrumento da sessão de julgamento de 27.08.2019; e (ii) concedida vista aos agravados para manifestação sobre novos argumentos e documentos, nada a deferir.

Conceder-se-á efeito suspensivo (art. 1019, inciso I do CPC) ao presente recurso sob fundamento principal consistente na existência de ilegalidades na INSTRUÇÃO TÉCNICA CEAM/DILAM no 10/2013, documento este que foi apresentado pela própria parte agravada (no AI 5006068- 19.2019.4.02.0000, interposto pelo Município do Rio de Janeiro e julgado prejudicado por perda de objeto), sob a alegação de que a referida Instrução corresponderia às “diretrizes para o licenciamento ambiental do empreendimento, na forma do regulamento”, para a condição imposta pelo art. 10, VII, da Lei no 11.079/2004 e pelo art. 12 da LC no 105/2009.

Concluiu-se, aqui, após verificar o teor do referido documento já conhecido das partes, que tal condição não parece ter sido satisfeita.

Os novos documentos do agravante são aqueles referentes à ausência de (a) ato administrativo de cessão do terreno ao Município do Rio de Janeiro (Evento 1 – ANEXO 2) e de (b) licenciamento ambiental (Evento 1 – ANEXO 3), os quais não constituiriam óbice ao deferimento do pedido em apreço. Os argumentos extraídos da análise dos mesmos apenas se acrescentam àquele principal para a presença de fumus boni iuris, razão pela qual eventual pronunciamento dos agravados seria inócuo para infirmar a decisão  favorável à concessão do efeito suspensivo ao agravo de instrumento.

Face ao exposto, voto no sentido de DEFERIR O PEDIDO DE ATRIBUIÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO.”

Documento eletrônico assinado por RICARDO PERLINGEIRO, Desembargador Federal,

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1 Resultado

  1. 10/10/2019

    […] artigo, publicado originalmente no site “A Sociedade em Busca do seu Direito”, a professora e jurista Sonia Rabello  destaca o envio, pelo Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro […]

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