Projeto de lei do Reviver Centro traveste Outorga Onerosa em Operação Interligada
A proposta do projeto de lei denominado “Reviver Centro” (PLC n.11/2021), em tramitação na Câmara Municipal do Rio, pretende usar o instrumento urbanístico da Outorga Onerosa do Direito de Construir sem cumprir os pré-requisitos previstos no Estatuto da Cidade, denominando-a de Operação Interligada. Portanto, se aprovada a proposta, certamente causará insegurança jurídica, pois poderá ser questionada na Justiça, assim como a “lei dos puxadinhos”, aprovada na era Crivella.
Antes, porém, é preciso que se diga que não trataremos aqui das ditas belas intenções teóricas do projeto – estimular residências no Centro -, pois de belas intenções o inferno da Cidade está cheio. Trata-se de ver se o instrumento usado no projeto de lei – denominado Operação Interligada – está consentâneo com o sistema onde está inserido; se é legal e se será eficaz.
A proposta legislativa (PLC nº 11/2021) prevê, em seu art.52, a possibilidade de aumento de gabarito de determinado grupo de imóveis situados nas Áreas de Planejamento 2 e 3 (AP 2 AP 3). Mas, para que seja possível construir usando estes índices adicionais de edificabilidade, agora dado pelo projeto, o interessado terá que adquiri-los, pagando por eles, junto à Municipalidade. Isto é chamado, no art.28 e segs. pelo Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001) de Outorga Onerosa do Direito de Construir. E o Estatuto da Cidade (ECi) é de observância obrigatória pelos Municípios, como norma nacional geral de direito urbanístico, em função do que dispõe art.24, I e parágrafos da Constituição Federal.
Veja o que diz o Estatuto da Cidade no art.28:
“Art. 28: O Plano Diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário”.
O art.52, §1º da proposta legislativa do “Reviver Centro” propõe exatamente isto: a alienação de direitos de construir, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário ao Município. Veja o texto:
“§1º Para efeito desta Lei Complementar, a Operação Interligada se refere à alteração de gabarito, mediante pagamento de contrapartida ao Município, das edificações não afastadas das divisas localizadas nas áreas em que incide o art. 448 da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro – LOMRJ”.
O instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir é um instrumento juridicamente delicado e complexo, pois pressupõe que os índices de edificabilidade, acima do que o ECi chamou de aproveitamento básico, não mais pertencem aos proprietários do terreno, mas à Municipalidade. Por isso, o Município pode vendê-los, observando, porém, as regras da lei nacional.
E quais seriam estas regras?
1. A previsão, no Plano Diretor da Cidade, das áreas onde se poderá construir além do índice de coeficiente (aproveitamento) básico (art.28, caput).
2. Também a previsão, no Plano Diretor da Cidade, dos limites máximos a serem conferidos, mediante contrapartida, “considerando a proporcionalidade entre a infraestrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área” (§3º, art.28)
3. A existência de uma lei municipal específica, evidentemente geral para toda a cidade e baseada na previsão do Plano Diretor, para estabelecer as condições (regras gerais) a serem observadas para a Outorga Onerosa do Direito de Construir, determinando especialmente a fórmula de cálculo, e contrapartida do beneficiário (art.30 do ECi). Esta lei, atualmente, não existe.
A regra do Estatuto da Cidade de que para a implantação da Outorga Onerosa do Direito de Construir sua previsão esteja no Plano Diretor é extremamente importante porque é no Plano Diretor da Cidade que se prevê e se acorda as regras urbanísticas que valem igualmente para todos. Isto porque seria uma iniquidade (injustiça) urbanística que para uns valesse regras de alienação do direito de construir e, para outros, se pudesse construir sem pagar à Cidade por estes benefícios. É o princípio geral de isonomia perante a lei, a ser traduzido no urbanismo pelo seu Plano Diretor, conforme prevê a diretriz contida no inciso IX, art.2º do Estatuto da Cidade que determina:
“IX – justa distribuição de ônus e benefícios do processo de urbanização”
Portanto, sem sombra de dúvida, a chamada “operação interligada” prevista no PLC 11/2021 é um simulacro da Outorga Onerosa do Direito de Construir, que é assim denominada para tentar não ter que observar as regras da lei nacional para a sua implantação.
Mas, cabe lembrar, que em Direito, não importa o nome que se dê ao instituto jurídico: valem as características de sua natureza, para que identifiquemos as regras a ele aplicáveis. Assim o é com a travestida operação interligada do PLC nº 11, que não cumpre as regras da Outorga Onerosa previstas no Estatuto da Cidade.
E o que fazer então para salvar o projeto “Reviver Centro” da ilegalidade que ronda parte de sua proposição?
Simples: apenas suprimir do projeto a parte travestida de operação interligada para inseri-la, de forma correta e estruturada, no projeto do novo Plano Diretor da Cidade que está na pauta das discussões.
Será que é tão difícil fazer o correto e justo para todos?
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Caro Jorge, obrigadíssima pelos seus comentários e, especialmente, pela sua leitura atenciosa do texto. Quanto à sua divergência sobre a natureza jurídica do índice básico, eu a compreendo perfeitamente. No entanto, minha posição (que estou desenvolvendo mais longamente em um possível próximo livro) é a expressada no texto, mas que não se resume simplesmente em dividir direito de propriedade do solo, do direito de construir. Nem tudo está no texto da Constituição; a Constituição é apenas o texto base de construção de todo um sistema jurídico. Assim o é com a construção do direito de propriedade imobiliária. Uma prévia deste assunto pode ser lido no texto cujo link segue. Parabéns pelo seu contínuo trabalho no seu blog A beira do Urbanismo. Grande abraço. SR http://www.soniarabello.com.br/wp-content/uploads/2012/06/Regula%C3%A7%C3%A3o-do-Territ%C3%B3rio-e-da-Propriedade-Imobili%C3%A1ria-Urbana.pdf.
Prezada Sonia,
Concordo inteiramente com a sua interpretação. Vista “de lá para cá”, essa Operacão Interligada é nada mais nada menos que uma Outorga Onerosa nas zonas de alta renda com contrapartida em forma de investimentos “sub-prime” no Centro da cidade.
Surpreendeu-me, no entanto, a sua interpretação (que é também, ao que me consta, de Porto alegre e São Paulo) de que
“O instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir é um instrumento juridicamente delicado e complexo, pois pressupõe que os índices de edificabilidade, acima do que o ECi chamou de aproveitamento básico, não mais pertencem aos proprietários do terreno, mas à Municipalidade. Por isso, o Município pode vendê-los, observando, porém, as regras da lei nacional.”
Sou de opinião que os índices de edificabilidade abaixo do que o ECi chamou de aproveitamento básico jamais pertenceram, continuam não pertencendo e é bom que não venham a pertencer, aos proprietários de terreno. Nenhum coeficiente de aproveitamento pode ser “vendido por um preço”, mas somente AUTORIZADO mediante CONTRAPARTIDA. O “preço do m2 excedente” é uma entidade meramente nominal, um “modo de dizer”, uma vez que o custo real para o incorporador/proprietário é, em qualquer caso, a contrapartida por m2 privativo posto à venda.
Não sou jurista, mas entendo que a Constituição não autoriza interpretar que a edificabilidade é um “bem dominical” da municipalidade, menos ainda que a edificabilidade abaixo do coeficiente básico PERTENCE ao proprietário do terreno. Como pode ser considerado propriedade privada um direito que está sujeito a modificações, a qualquer tempo e sem gerar obrigações indenizatórias, da legislação urbanística e do próprio Plano Diretor? Admitir que algum coeficiente pertence ao proprietário equivale a PRIVATIZAR o direito de construir, com efeitos desastrosos no caso de prefeituras que adotem Cbs variáveis, como prevê o ECi, e até no caso do Cb=1 em regiões de altos preços por m2 privativo e baixas densidades (Barra da Tijuca e similares), que geram rendas fabulosas, e onde, portanto, CBs fracionários são não apenas possíveis como absolutamente necessários para evitar contrapartidas NULAS.
Saudações e um grande abraço.