Tarifa zero em São Paulo: o passado no presente

Confiram o artigo de Paulo Sandroni sobre o assunto. O Movimento Passe Livre revive hoje uma proposta de tarifa zero feita no Governo de Luiza Erundina quando prefeita de São Paulo (1989-92).

Essa proposta é importantíssima para o urbanismo social, já que grande parte do custo da moradia, as classes menos favorecidas pagam em suas despesas com o transporte público.

Tarifa zero

“Durante o mandato de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-1992) o Executivo enviou uma proposta de Tarifa Zero à Câmara de Vereadores. A ideia foi do Lucio Gregori então Secretario de Transportes coadjuvado pelo Jairo Varoli então Presidente do CET. Como Presidente da CMTC, empresa pública encarregada da operação e gestão do serviço de ônibus em São Paulo encampei imediatamente a proposta por reconhecer as enormes vantagens não apenas sociais, mas também econômicas e políticas que ela significava. Levamos a proposta à Luzia Erundina que imediatamente deu luz verde para que transformássemos a ideia em um projeto de lei a ser rapidamente encaminhado á Câmara de Vereadores. Percebendo o impacto do projeto e especialmente seus alcances políticos, a oposição que no momento mantinha maioria na Câmara de Vereadores rejeitou a proposta, e a tarifa zero não pode ser colocada em prática.

A logica da proposta era seguinte. O transporte seria gratuito e as empresas privadas que atuavam no setor seriam pagas pelo custo dos serviços prestados. Como acontece, por exemplo, com o serviço de limpeza pública. Os recursos para o financiamento sairiam de um forte aumento do IPTU incidente sobre as famílias mais ricas, e um aumento moderado sobre as famílias de classe média. O IPTU das familias mais pobres não sofreira alteração. A classe média seria compensada, pois os membros da família que não possuissem carro – seus filhos, ou mesmo empregadas domésticas – não pagariam pelo transporte público.

A frota de ônibus aumentaria cerca de 50%. Os 10 mil ônibus então em circulação seriam acrescidos de mais 5 mil para fazer frente ao aumento da demanda. Este aumento teria origem nas pessoas que não podendo pagar a tarifa percorriam longos trajetos a pé no circuito casa-trabalho-casa, ou por aqueles que usando outros meios de transporte (carros p. ex.) passariam a andar de ônibus.

O transporte seria desta forma democratizado – todos que desejassem teriam acesso a ele gratuitamente – tivessem ou não recursos para custear seus deslocamentos.

Alívio no trânsito

O novo sistema ajudaria a aliviar o transito. Todos sabemos que os vilões dos congestionamentos são os carros particulares. O espaço ocupado por um ônibus é cerca de 30 vezes menor do que carros que transportem passageiros equivalentes. A tarifa zero atrairia para o transporte coletivo aqueles proprietários de carros de classe média baixa para quem a manutenção de um carro velho é muito elevada em relação à sua renda. Existe uma “lei” do trânsito que se 10% dos carros não circularem durante dias úteis o transito melhoraria em cerca de 15%. Ao contrário, se a frota de carros particulares aumentar 10% o trânsito pioraria estes mesmos 15%. A retirada de carros das ruas provoca um efeito mais do que proporcional na melhora do trânsito.
Para retirar carros de famílias de classe média foi criada uma alternativa diferente: os ônibus especiais. De cor verde e prateado estes ônibus climatizados, e com lugares só sentados e musica ambiental tinham a missão de fornecer uma alternativa melhor a quem quisesse deixar seu carro em casa mas não estivesse disposto a enfrentar a “tigrada” nos ônibus comuns.

Estes teriam que pagar uma tarifa cerca de 3 vezes maior do que a vigente na época quando fizemos a proposta da tarifa zero. Estes ônibus especiais poderiam circular nos corredores dando uma alternativa rápida e confortável para a classe média. Considerávamos que os mais ricos não renunciariam a seus carros e sua mais provável iniciativa de “up grade” seria no sentido de contratar o serviço de helicopteros, como acontece hoje em São Paulo. Mas se os sistemas gratuito (ônibus comuns) e especiais tirassem carros das ruas o objetivo de fazer os ônibus circularem mais rapidamente seria alcançado aumentando a produtividade do sistema e baixando seus custos. Embora a tarifa zero não tivesse aprovada, os ônibus especiais foram, e várias linhas estavam operando em 1992 no final da gestão de Luiza Erundina.

A melhor prova que estavam tirando uma certa quantidade de carros das ruas não vinha apenas de entrevistas periódicas que fazíamos com os usuários. Vinha do fato destes ônibus estarem desviando clientes dos taxis. E, como sabemos, o taxi é uma alternativa para quem tem carro e na eventualidade de não poder usá-lo recorre a este serviço embora pagando um preço bem mais elevado. Com a vitoria de Paulo Maluf em 1993 os taxistas fizeram pressão sobre o novo Prefeito para acabar com as linhas de ônibus especiais, pois estes estavam roubando seus clientes. O novo Prefeito os atendeu, e estas linhas foram desaparecendo aos poucos.

Complementando esta mudança estrutural começamos a desenvolver também o projeto de corredores para o ônibus de cinco portas: três pela direita e duas pela esquerda. Este verdadeiro ovo de Colombo criado em São Paulo e utilizado em Curitiba (e hoje em várias cidades latinoamericanas com destaque para Bogotá p.ex.) significa que o custo de implantação de um corredor se reduz a quase um terço em relação aos corredores tradicionais que exigiam enormes intervenções no viário. Alterar o ônibus colocando mais duas portas pela esquerda é muito mais barato do que fazer custosas alterações em avenidas e ruas. Esta nova abordagem permitia que os ônibus utilizassem as faixas da esquerda, de maior velocidade, recebendo e desembarcando passageiros. Nos corredores com este novo sistema, cujo custo de implantação era bem mais baixo, a velocidade média aumentava sensivelmente o que constituía entre outros benefícios um diferencial importante para que as pessoas deixassem seus carros em casa. Inclusive uma fração de usuários de classe média poderiam optar por esta alternativa, mesmo que ali o conforto não fosse o mesmo que nos ônibus especiais.

Um dos momentos mais gratificantes de minha vida como administrador público ocorreu nos primeiros dias de funcionamento do corredor Vila Nova Cachoeirinha na zona norte de São Paulo, o primeiro a utilizar o ônibus de cinco portas. Ás cinco da manhã fui verificar se estava tudo correndo bem. Havia uma fila de umas trinta pessoas trazidas por ônibus menores de linhas alimentadoras, e uma série de ônibus no terminal esperando o horário para começar a funcionar. A primeira da fila era uma jovem que não quis entrar quando o primeiro ônibus chegou. Achei aquilo estranho: uma pessoa se recusar a entrar num ônibus absolutamente vazio com fartos lugares para sentar etc. Três minutos depois um novo ônibus parou e a jovem que continuava em primeiro na fila também se recusou a entrar. Não resisti e fui indagar porque ela não havia entrado. A resposta foi simples. Ela disse que não entrava porque chegaria muito cedo no serviço e o local onde trabalhava ainda estaria fechado, não sendo seguro ficar do lado de fora. Perguntei então porque ela chegara tão cedo? Ela disse que ainda não tinha confiança no sistema… O trajeto, que antes do corredor demorava quase uma hora, agora ela poderia fazer em 25 minutos!.
Os dois prefeitos seguintes – Maluf e Pitta – não deram continuidade no projeto de construção de novos corredores. Se isso tivesse acontecido seria irresistível para setores da classe média deixar de usar um transporte rápido e gratuito ( no caso da tarifa zero ter sido aprovada) para utilizar carros que demorariam muito mais e que seriam muito custosos em função da renda de seus proprietários. Mas isto infelizmente não ocorreu. Os corredores foram retomados na gestão de Marta Suplicy mas não na escala prometida e necessária. Nas gestões seguintes de Serra e Kassab a construção de corredores foi praticamente abandonada. O círculo virtuoso – mais transporte público gratuito, melhora no transito, melhora no transporte publico gratuito – que poderia ter sido um ponto de inflexão com a vitoria do público sobre o privado simplesmente não aconteceu.

A Racionalidade Econômica

A proposta tinha também um elemento econômico importante que consistia na eliminação dos custos de cobrança da tarifa. A eliminação dos salários e encargos pagos aos cobradores dispensados (que seriam reciclados tornando-se motoristas dos ônibus adicionais), da vigilância, da contabilidade, da emissão de bilhetes, dos roubos e assaltos, que somados representavam na época cerca de 22% do custo da tarifa permitiria um menor comprometimento da receita tributária para financiar o sistema. A produtividade aumentaria: um numero menor de trabalhadores transportaria um numero maior de passageiros.

A medida portanto traria enormes benefícios para a maior parte da população e a cidade funcionaria melhor e com menores custos. Alem disso, os mais pobres não tendo que pagar tarifa teriam algum dinheiro extra para melhorar a alimentação, a saúde a educação, e a moradia. Os que pagariam pelo financiamento do sistema seriam aqueles que podem pagar: os que vivem em autenticas mansões suspensas. Sendo um imposto direto sobre o patrimônio não seria repassados a custos ou preços não causando nenhum efeito colateral de desestimular o crescimento geral da economia.

Hoje o transporte nas grandes cidades representa o terceiro maior gasto entre os assalariados no país. E o transporte por ônibus é ruim, desconfortável, demorado e não muito confiável, alem de caro para o poder aquisitivo da população. O movimento que hoje se manifesta em torno do passe livre talvez esteja sinalizando que a situação chegou a um limite. Mas talvez fosse a hora de pensarmos em termos estratégicos e buscar soluções estruturais e não apenas alternativas pontuais como a de revogar o atual reajuste. No caso de revogação a Prefeitura teria que aumentar o subsídio subtraindo recursos de outros setores essenciais como a saúde e a educação. E isto não me parece conveniente.

O melhor seria pensar desde já em como evitar um reajuste tarifário em 2014. Proponho que se pense e discuta a intensificação do IPTU progressivo para as famílias de maior renda, aquelas situadas no topo da pirâmide da riqueza, de tal maneira a cobrir o aumento de custos (*) que teremos inevitavelmente nos próximos 12 meses, permitirndo que a tarifa permaneça inalterada por mais tempo beneficiando a grande maioria da população.”

Paulo Sandroni

(*) – Os interessados na questão da tendência do aumento de custos dos serviços públicos remeto a meu artigo neste blog no setor Urban Development Papers,

“La dinámica del desarrollo urbano: expansión espacial, costos de los servicios públicos y captura de plus valías, un abordaje teórico”.

Artigo publicado orginalmente no blog sandroni.com.br

Paulo Sandroni (São Paulo, 1939) é um economista brasileiro. Graduado pela FEA-USP em 1964, é mestre em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Entre 1965 e 1969, foi professor da Faculdade de Economia da PUC-SP e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro. No início dos anos 1970, trabalhou na Universidade do Chile e na Universidade de Los Andes, em Bogotá. Atualmente é professor da Escola de Administração de Empresas , da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e da Faculdade de Economia e Administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É fellow do Lincoln Institute of Land Policy, um think tank de Cambridge (Massachusetts) que se dedica a questões relacionadas com a tributação, uso e regulação do solo.

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