COSTA DO MARFIM – O LONGE QUE ESTÁ PERTO
Jamais poderia pensar que estaria tão perto do conflito que massacra este país africano. Mas estou. Minha querida amiga Rosina, casada com o francês Bertrand, estava lá. Ontem conseguiu sair.
Com a sua autorização, compartilho aqui como foi esta vivência – em dois mails – que mostram como o destino pode nos levar para situações improváveis; que vemos tão perto na TV, mas pensamos que é tudo só “filme de aventura”. É um perto longe. É só desligar o botão e tudo se apaga, automaticamente. Mas está lá. Somente, o fino humor de Rosina continua o mesmo, apesar das circunstâncias.
“As coisas aqui não estão nada bem. Estou num bairro que o Exército francês não tem acesso. Ai vai o relato:
Como disse a vocês, «dei bobeira» e a guerra me pegou. Eu estava aqui, semi-tranquila, com o Bertrand, esperando o dia de irmos para a Nigéria.
Na véspera, tive uma super dor de estômago, porque soube que, no Rio, minha mãe tinha tido um problema e teve que chamar a ambulância. Nada pior do que, quando você esta longe, as pessoas te dizerem que o problema »não é grave». Bom, com minha hiper dor de estômago, não embarquei para a Nigéria. Afinal, Ouattarra, presidente eleito, que não conseguiu tomar posse de fato, ainda estava no norte do país e Gbagbo sentado no Palácio, sem que ninguém – nem Sarkozy, nem Obama, nem a ONU, nem a União Européia, nem a União dos Países Africanos – o incomodasse. Estava tudo sob controle !
Bertrand botou o pé no avião e, dez minutos depois do embarque, ouvi pela rádio daqui que as tropas de Ouattara estavam sitiando Abidjan. Tentei sair de casa, mas, como moro em Cocody, onde o Gbagbo também mora, o bairro já estava cercado e não tinha mais jeito.
Ha três dias e noites ouço bombas zunirem em cima da minha cabeça. Metralhadoras, já as chamo pelo apelido – kalish, hoje nas mãos dos «jovens patriotas», meninos de 15 a 18 anos que Gbagbo convocou para se unirem às suas tropas, em troca de um dinheirinho.
Esses meninos estão alojados numa favelinha embaixo da minha casa, onde o tiroteio é constante. São alvo do exércido de Ouattara, «entièrement équipée à la européenne» (Hergé, Tintin au Congo). Só de olhar as fotos dos militares, a gente imagina como eles são treinados – dá calafrios.Ontem , de madrugada, um obus explodiu dentro da minha piscina, há vinte metros da minha cama. De manhã, achei que seria correto telefonar para a «La Licorne», exército francês na Costa do Marfim, e para a Embaixada da França – afinal, também sou francesa.
Na «La Licorne», eles me disseram que não podiam passar as pontes que separam o QG do exército francês de Cocody – não, por enquanto – e que eu ficasse bem quieta em casa. Na Embaixada, a pessoa, muito gentil que me atendeu na célula de crise, só conseguiu me dizer que não era para eu ficar inquieta, porque um obus nunca cai no mesmo lugar duas vezes seguidas.
Diante da perspectiva de vestir o meu biquini e me jogar na piscina, único lugar que a Embaixada da França achava que eu estaria segura, resolvi ser mais pragmática e colocar meu colchão embaixo do arco da porta, como orientam os japoneses em caso de terremoto. Se uma bomba cair , estarei segura.
Tenho comigo mais cinco pessoas – empregados da casa e do condomínio, que não tinham para onde ir, depois dos ataques covardes que Gbagbo fez nos bairros pobres, matando todos que fossem contra ele – convidei-os, já há uns quinze dias, para morar com a gente, durante esse período difícil. Então, temos agora dois católicos e quatro muçulmanos – rezamos juntos todos os dias.
Para cair na piscina, como o obus fez, sem arrasar minha casa, foi preciso traçar uma curva impossível, num ângulo improvável.
Nada me acontecerá. Ainda tenho dois filhos que me seguram por aqui. Convido os amigos a abrir um espumante comigo logo que tudo isso acabar. Aviso para a gente marcar a hora de brindar a vida. Beijihos Rosina”
“Oi queridos Nelson e Sonia. Cheguei agora em Takoradi, no Gana. Anteontem fui resgatada por um tanque blindado na porta da minha casa, que embarcou também uma familia com três crianças pequenas que moram do outro lado da minha rua.
Esse tanque se juntou a uma fila Indiana composta de mais uns vinte tanques, com a bandeira francesa em cada um deles, e nos dirigimos para o acampamento de refugiados do exército francês, La Licorne (parece ate nome de boate).
Cheguei, fui registrada, e me deram um passe, que servia para as refeições, uma cama na tenda 35, uma toalha, um lençol e um sabonete (até cheirosinho…). No dia seguinte, fui negociar a minha ida para o aeroporto, para o Bertrand poder me pegar la.
Como refugiada, sob a proteção do exercito, não tinha o direito de sair. Falei com um major, que me colocou na lista de um voo militar para Dakar, o que me dava o direito de sair do acampamento com uma escolta até o aeroporto. So que chegou na hora, eu via o Bertrand me esperando com o aviaozinho do outro lado da pista, mas os militares queriam me embarcar para Dakar. Sabe como é militar – ordem é ordem.
Até eu explicar que « urubu não é galinha » e que eu não ia de jeito nenhum embarcar para Dakar e que meu maridinho estava me esperando, haja papo. Bom, Estou agora com a roupa do corpo, uma escova de dentes, meu computador e meu celular. Mas com o calor de todos os meus amigos, que tanto me deram força. Obrigada a vocês dois. De coração. Obrigada pelas orações. Funcionou mesmo.
Vocês sabem, no bairro onde eu moro, foi a unica operação de resgate possivel, que se deu entre o ataque da ONU e os novos ataques agora ao Palacio Presidencial e à residência do Gbagbo. Tenho varios amigos que estão entrincheirados em casa, inclusive a embaixadora e a consulesa do Brasil, esperando um possivel resgate.
O ex-diretor da Sifca, Yves Lambelin, que o Bertrand substitui, foi sequestrado pelas forças pro-Gbagbo no Novotel de Abidjan (onde a gente tb deveria estar se o Bertrand não tivesse tido a famosa reunião) , e ate agora ninguém sabe aonde ele se encontra, se esta vivo ou morto… Obrigada mesmo. Um beijinho carinhoso, Rosina”