Segurança Jurídica ou Correção de Atos Nulos?

Um caso judicial para tentar entender…

Em recente julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) houve divisão de entendimento entre os Juízes daquela Suprema Corte entre aplicar o princípio da segurança jurídica, ou o da legalidade, corrigindo atos nulos (atos contra a lei, e portanto insuscetíveis de correção).

 
O caso versou sobre um oficial substituto de um cartório de notas que havia sido investido como oficial titular do mesmo sem concurso público. Acontece que desde a Constituição de 1988, a investidura (posse e exercício) nas funções notariais, reconhecidas como serviço público, deve se dar por meio de concurso público. É o que diz o art. 236 par.3º da CF:
o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos”. É bem verdade que o cidadão, antes de 1988, já exercia as funções de oficial substituto no cartório, mas não era o seu titular. Pretendia sê-lo. Mas para ocupar a vaga de titular dependia de fazer concurso, segundo a Constituição. Porém, mesmo assim, ele foi nomeado para o cargo.

 
Interessante ressaltar que a Constituição Federal, em seu art. 236, determinou que este serviço público seria executado “por delegação, em caráter privado”, mas sem dispensar o concurso para as pessoas que quisessem exercê-lo.
Ora, o candidato a titular, que já exercia as funções de notário antes de 1988, entendeu que tinha o “direito adquirido” de continuar a exercer a função, já não mais como substituto, mas como titular. No entanto, em 1994, transcorrido mais de 15 anos (!) de sua nomeação como titular, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em decisão administrativa, decidiu por desconstituir esta sua situação de titular, por ferir o dispositivo constitucional do concurso público.

O interessado impetrou então Mandado de Segurança contra a decisão do CNJ por entender que, transcorrido mais de 5 anos, o CNJ, órgão de controle administrativo a Justiça brasileira, não poderia desconstituir um ato de investidura.  É que há uma lei federal (Lei 9.784/97) que em seu art.54 dá o prazo de 5 anos para a Administração Pública (no caso administração pública judicial) rever os seus atos nulos, desconstituindo-os. Este prazo foi dado pela lei para atender o princípio da segurança jurídica.
 
Eis a questão: quando um ato administrativo é contra a lei, e portanto nulo, deve-se atender o princípio da segurança jurídica do indivíduo, impedindo sua desconstituição, ou restaurar a ordem pública, e cumprir a lei a qualquer tempo?
 
No julgamento, a maioria dos Ministros entendeu que se deveria atender à ordem pública, à Constituição e desconstituir o ato de investidura, havida sem concurso. Mas a decisão do Tribunal não foi unânime, já que alguns Ministros (vencidos) entenderam que o princípio da segurança jurídica (ou da estabilidade das relações jurídicas) deveria prevalecer, e garantir a continuidade da investidura, mesmo sendo ela ilegal.
 
O STF, na maioria de seus julgados, tem dado preferência ao princípio da estabilidade das relações jurídicas em detrimento do princípio da legalidade, especialmente quando a decisão de anular atos ilegais é do Executivo. No caso, como a decisão veio do CNJ, e não do Executivo, penso que este fato pesou em sentido contrário. De toda forma, ressalte-se que a nulidade foi em relação a uma norma constitucional, e não em relação a uma lei ordinária qualquer e, embora este fato não esteja explicitado no resumo da decisão, pode ter pesado na decisão de desconstituir a investidura.
 
Este julgamento nos mostra o quanto é difícil e instável a aplicação das leis. Se os próprios Ministros têm posições divergentes sobre situação tão simples, o que pensar quanto aos cidadãos, quanto ao Administrador Público, na hora de saber que caminho tomar?
 
E pensar que as decisões podem variar, na sua interpretação, de juiz para juiz, até chegar, finalmente, ao STF (quando chega). Podemos então imaginar o quão longo e tortuoso pode ser, para todos nós, o conhecimento do Direito que temos que cumprir… Aliás, qual Direito?

Veja abaixo o resumo da decisão

SERVIDOR PÚBLICO – Titular de serventia extrajudicial – Vaga surgida após a CF/88 – Necessidade de realização de concurso público de provas e títulos desde a promulgação da CF/88, e não com a l. 8935/94 – Inocorrência de decadência administrativa
(Biblioteca jurídica do nosso site / Direito público)
 
 
INFO 613 STF
Serventia extrajudicial e concurso público – 1
 
Não há direito adquirido do substituto, que preencheu os requisitos do art. 208 da Constituição pretérita, à investidura na titularidade de cartório, quando a vaga tenha surgido após a promulgação da CF/88, a qual exige expressamente, no seu art. 236, § 3º, a realização de concurso público de provas e títulos para o ingresso na atividade notarial e de registro. Ao reafirmar essa orientação, o Plenário, por maioria, denegou mandado de segurança impetrado contra acórdão proferido pelo CNJ que desconstituíra a efetivação do impetrante — investido sem concurso público — como titular de serventia extrajudicial. Alegava-se a ocorrência de decadência administrativa (Lei 9.784/97, art. 54), uma vez que tal provimento se dera em 11.1.94 e já transcorrido lapso temporal superior a 5 anos para a Administração Pública rever seus atos. Asseverou-se que, nos termos da atual Constituição, sempre se fizera necessária a submissão a concurso público para o devido provimento de serventias extrajudiciais eventualmente vagas ou para fins de remoção. Dessa forma, rejeitou-se a assertiva segundo a qual somente com a edição da Lei 8.935/94 teria se tornado auto-aplicável a norma prevista no art. 236, § 3º, da CF (“O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.”). Ressaltou-se que a jurisprudência do STF se consolidara, há muito, no sentido da indispensabilidade do certame nesses casos. Consignou-se, ademais, que a atual Carta inaugurou uma nova era, ao romper a tradição política feudal de atribuição de titulações de cartórios e ao estabelecer que os princípios republicanos da igualdade, da moralidade e da impessoalidade deveriam nortear a ascensão às funções públicas.
 
MS 28279/DF, rel. Min. Ellen Gracie, 16.12.2010. (MS-28279) Plenário – Informativo 613 do STF
 
Serventia extrajudicial e concurso público – 2
 
Vencidos os Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, Presidente, que, ao enfatizar o princípio da segurança jurídica, concediam a ordem. Entendiam que o CNJ, órgão administrativo, teria atuado depois de mais de 15 anos da efetividade do impetrante no cargo, sem observar o que previsto no art. 54 da Lei 9.784/99, que estabeleceria a intangibilidade, no âmbito administrativo, do ato praticado há mais de 5 anos. Salientavam, ainda, que a fluência de tão longo período de tempo terminaria por consolidar expectativa no espírito do cidadão (princípio da proteção de confiança). Precedentes citados: RE 191794/RS (DJU de 6.3.98); RE 302739 AgR/RS (DJU de 26.4.2002); RE 383408 AgR/MG (DJU de 19.12.2003); RE 413082 AgR/SP (DJU de 5.52006); RE 252313 AgR/SP (DJU de 2.6.2006); AI 654228 AgR/MG (DJe de 18.4.2008).
MS 28279/DF, rel. Min. Ellen Gracie, 16.12.2010. (MS-28279) Plenário

1 Resultado

  1. dvb disse:

    Infelizmente o substituto sabia desde o início que sua investidura era ilegal. É bem provável que ele tem "forçado a barra" para ser nomeado titular, embora sem prestar concurso público. Chancelar a possível torpeza do delegatário através de decisão do Supremo é duro…

    De qualquer forma, concordo que o Supremo adora aplicar o princípio da segurança jurídica ao Executivo, mas "dentro de casa" ainda mantém profunda resistência, salvo o Min. Dias T., que é ministro completamente a favor do governo e cujo princípal atributo do currículo foi a militância no PT.

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