Pão de Açúcar na mira da Unesco e da Justiça brasileira
A UNESCO está de olho no Pão de Açúcar: nas obras de perfuração e corte da rocha monumental que a empresa privada concessionária há cem anos daquele bem público federal, estava lá realizando para pendurar quatro tirolesas dali até o Morro da Urca.
E o que a UNESCO tem a ver com isto, já que é um organismo internacional e o caso se dá em nosso país ?
Acontece que o Brasil, o Estado do Rio de Janeiro e a Prefeitura do Rio, em 2012, pediram e obtiveram junto a este órgão o título de Patrimônio Mundial da Paisagem Cultural da Cidade do Rio de Janeiro. Este título, que é um reconhecimento mundial para a Cidade, e que muito favorece o seu turismo e a sua economia, carrega também consigo compromissos internacionais, que são os de manutenção e conservação das áreas e monumentos propostos para preservação.
Estes compromissos estão escritos e assumidos não só no documento que o governo brasileiro enviou para a UNESCO por ocasião da candidatura ao título, como também no Plano de Gestão *1, enviado em 2014, e aprovado pelo Centro do Patrimônio Mundial.
É infantil pensar que, no caso, poderia ser dado aquele “nosso jeitinho” de sempre; ter de um lado o bônus – o título -, mas, por outro lado, apostar no esquecimento dos compromissos de preservação e conservação das áreas e monumentos da Paisagem Natural e Cultural do Rio.
O Pão de Açúcar, assim como o Corcovado, o Jardim Botânico e o Parque do Flamengo, é um dos monumentos símbolos da área objeto do título e, por isso, carrega consigo o compromisso inabalável de conservação especial e integral de sua paisagem e de manutenção da integridade física dos seus monumentos naturais. Isto se quisermos garantir a manutenção do título para a Cidade.
“A comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio” Aluísio Magalhães
As obras de corte e perfuração no monumento natural tombado Pão de Açúcar, que violaram a sua integridade física como uma mutilação, foram iniciadas em setembro de 2022, sem qualquer autorização do órgão federal de tutela do patrimônio nacional – o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). E assim continuaram, na ilegalidade, por mais de quatro meses, como que “adiantando o serviço”, e seguindo outro velho “jeitinho”: o de dar por concluída a ilegalidade para pleitear depois a sua regularização, como um dano irreversível.
E quase deu certo, pois o IPHAN, depois de uma fiscalização feita em janeiro de 2023, que constatou a agressão não licenciada ao monumento internacional, acabou por autorizar a mutilação na penedia do Pão de Açúcar e no Morro da Urca, para que lá fossem penduradas as tais quatro tirolesas.
Mas este absurdo caso de desídia institucional, tanto por parte do IPHAN quanto da Prefeitura do Rio, teve que enfrentar a forte reação da sociedade carioca que se opôs, com firmeza, à mutilação de seu famoso monumento.
E como?
Constituiu movimentos civis, como o #PãodeAçucarsemTirolesa, junto com outras instituições de defesa dos bairros, a exemplo das associações de moradores e da Federação das Associações de Moradores do Rio (FAM-Rio), e também com associações de defesa do Meio Ambiente, como o GAE (Grupo de Ação Ecológica), e entidades profissionais e de preservação do patrimônio Cultural, como o ICOMOS (Comitê Internacional de Sítios e Monumentos), todos pela manutenção da integridade do monumento e pela preservação integral da unidade de conservação do Pão de Açúcar.
Estes movimentos da sociedade civil oficiaram ao Ministério Público Federal com informações, pedindo a defesa do direito fundamental cultural de preservação do patrimônio brasileiro. Assim instado pela sociedade civil, o MPF, através da ação eficiente e eficaz do Procurador Federal Sérgio Suiama, propôs Ação Civil Pública, na Justiça Federal, e obteve a paralisação da mutilação da penedia do Pão de Açúcar, por uma liminar dada pelo Juiz Federal Paulo André Bonfadini, e ainda garantida pelo Desembargador Federal Luiz Paulo Araújo Silva.*2
Além disto, o Icomos Brasil oficiou aos órgãos internacionais para pedir a verificação do cumprimento dos compromissos de preservação do sítio monumental assumidos junto a UNESCO pelo Brasil e pela Prefeitura do Rio. Em função disto, a UNESCO agilizou o procedimento de checagem dos fatos, indagando as informações preliminares ao governo brasileiro *3. Após, seguirá, muito provavelmente, a formação de um grupo de consultores internacionais para exame da situação e composição de recomendações quanto à preservação do sítio, necessárias à manutenção do título de paisagem mundial pela Cidade. Tudo isto só foi possível em função da paralisação, pela liminar judicial dada na Ação Civil Pública, das obras de mutilação do Monumento Natural Pão de Açúcar.
“Ou restaura-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”
As obras de perfuração e cortes no penhasco monumental do Pão de Açúcar e Morro da Urca – bem público de uso comum do povo, monumento geológico internacional, unidade de conservação ambiental natural, patrimônio nacional e internacional – para lá pendurar quatro tirolesas particulares da empresa que explora comercialmente a concessão deste bem público federal – começaram e seguiram por quatro meses sem permissão federal; estas obras foram realizadas, neste período, ilegalmente. Em função disto, o Ministério Público Federal pediu a abertura de inquérito penal para verificar se houve, ou não, crime ambiental federal, fato este que já está em apuração através do Inquérito Policial nº 5073148-81.2023.4.02.5101.
Apesar da pressa na realização das ilegalidades colossais contra o patrimônio nacional, a sociedade carioca estava alerta, e o dano total contra bem cultural preservado não chegou a se consumar totalmente.
Há, agora, dois caminhos a serem escolhidos pela sociedade, pelas autoridades públicas e pela Justiça: o primeiro é o de regularizar a ilegalidade, admitindo que cometer ilegalidades compensam, e sacramentando o ditado “é melhor pedir perdão, do que pedir permissão”, já que tudo está “quase pronto”. Ou então, reverter essa cultura, e fazer cumprir a lei por todos. No caso, fazer sim, um projeto de restauração e recomposição das áreas danificadas com jardins e áreas de preservação na unidade de conservação, tudo conforme o compromisso assumido pelo governo brasileiro e a Prefeitura do Rio junto à UNESCO.
Neste caso, cai como uma luva o ditado do carioca Stanislaw Ponte Preta, observador arguto destas velhas práticas brasileiras: “Ou restaura-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”. Se pode perfurar, cortar, fazer desmanche, ou seja, mutilar mesmo que “só um pouquinho” a penedia do Pão de Açúcar, como alegam alguns, para lá pendurar-se quatro tirolesas, o que mais os órgãos de preservação poderão permitir ou proibir nos outros milhares de bens tombados no território brasileiro?
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*1 Veja alguns dos compromissos assumidos no Plano de Gestão, e que condicionam as decisões federais, estadual e municipal no trato dos monumentos e do sítio Paisagem Cultural do Rio: “Relativas ao Monumento Natural dos Morros do Pão de Açúcar e da Urca: Conservar, proteger e recuperar o ecossistema de Mata Atlântica existente, promovendo a conscientização ambiental e formas primitivas de recreação; Propiciar a realização de atividades de pesquisa científica e monitoramento ambiental; Promover a recuperação de áreas colonizadas por espécies vegetais invasoras; Realizar a recuperação de áreas erodidas por ações naturais ou por atividades antrópicas; Implantar ponto de recepção de visitantes do MONA no Morro da Urca; Mitigar os impactos das operações turísticas relacionados à visitação nos morros do Pão de Açúcar e da Urca; (…)”
*2 Para conhecer melhor a situação processual, na perspectiva da preservação do monumento, é interessante ler a réplica do Ministério Público Federal recentemente juntada ao processo da Ação Civil Pública (aqui)
*3 Veja a nota da UNESCO sobre o assunto aqui.