Rio: terra da “beleza e do caos”, urbanístico e legal
O caso dos projetos de lei do Vasco e do Autódromo, e a derrama de índices urbanísticos na cidade
Contrariando diretrizes e regras do Estatuto da Cidade, a Prefeitura do Rio, logo após a aprovação do seu novo Plano Diretor em março de 2024, encaminhou à Câmara Municipal dois projetos de lei urbanísticos que fazem uma verdadeira derrama de novos índices de ocupação do solo por toda a cidade: o PLC nº 142/2023 , chamado projeto de lei do Vasco, e o PLC nº 162/2024, projeto de lei do Autódromo do Rio.
Os referidos projetos de lei foram aprovados nesta terça-feira, dia 18 de junho, em 2ª votação, e preveem aumentos significativos dos índices urbanísticos (gabarito, taxa de ocupação, usos permitidos), daqueles expressamente previstos no Plano Diretor da Cidade (LC 270/2024). Além de contrariarem, como veremos, as normas do Estatuto da Cidade e do Plano Diretor (PD), os PLCs foram enviados à Câmara sem estudos técnicos, sem que o Poder Executivo realizasse audiências públicas, e sem ouvir o Conselho de Política Urbana, o que contraria a Constituição Estadual, e a Lei Orgânica do Município, conforme jurisprudência consolidada não só do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, mas também dos Tribunais Superiores brasileiros.
Por isso, causa espanto e perplexidade de não ter a Câmara Municipal devolvido ao Executivo estes projetos, tendo admitido a tramitação dos mesmos. Isto porque foi a própria Câmara que aprovou, no texto do Plano Diretor de 2024, os Coeficientes de Aproveitamento Máximos (CAM) de uso e ocupação do solo para toda a Cidade, e que agora os referidos projetos de lei pretendem alterar exponencialmente, conforme se pode ler e constatar no texto do blog UrbeCarioca , “Vendo o Rio: Urbanismo, Mercado Imobiliário e Gabaritos – o Caso do Vasco da Gama” [1].
É relevante apontar que o novo Plano Diretor do Rio fez uma alteração jurídica fundamental em relação ao sistema legal urbanístico anterior da Cidade, uma vez que optou por inserir, em seu texto, os índices máximos de edificabilidade de todo o seu território, que foi, supostamente, objeto de estudos e debates com a sociedade. Optou por esta política exatamente para não mais permitir que leis extravagantes viessem a modificar, ano a ano, e caso a caso, o planejamento urbanístico de uso e ocupação do território da Cidade, feito para viger para os próximos 10 anos. Como consequência, quaisquer modificações do que está estabelecido no texto do Plano Diretor só poderá ser alterado mediante os procedimentos e formalidades de elaboração de um Plano Diretor: estudos técnicos, audiências e consultas públicas por bairros, publicidade de informações, oitiva do Conselho de Política Urbana; tudo conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal, no RE 607940/DF [2].
No passado, antes da aprovação do Plano Diretor de 2024 que introduziu em seu texto todos os índices máximos de uso e ocupação do solo, o Executivo e a Câmara Municipal tinham o velho hábito de fazer leis complementares, caso a caso, modificando os índices construtivos gerais da Cidade para “resolver problemas” particulares e específicos, públicos ou privados, de instituições, times de futebol, construções irregulares etc. Contudo, agora, com a nova sistemática adotada pelo Plano Diretor, isso não é mais possível, mesmo com a edição de lei posterior, formalmente da mesma hierarquia da anterior.
Isto porque, do ponto de vista material, no entendimento do Supremo Tribunal Federal no referido acórdão, a Constituição Federal (e Estadual) colocou o Plano Diretor numa hierarquia referencial superior em relação a outras leis extravagantes posteriores, ao dizer:
“art. 182: O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.”
Portanto, estando os índices máximos de edificabilidade estabelecidos no Plano Diretor, a transferência de índices de um lote, ou imóvel para outro, através da figura da Transferência de Direitos de Construir (TDC), só poderá ser feita dentro dos limites do coeficiente máximo estabelecido no próprio Plano, e jamais aumentando os limites e extrapolando os coeficientes previstos no texto do PD que, supõe-se, foram estabelecidos, conforme estudos técnicos, e em função da infraestrutura instalada, conforme dispõe os arts.2º, inc.VI, c, d c/c art.28, §3º do Estatuto da Cidade.
Outro ponto fundamental a ser mencionado é o de que é fake – falso – do ponto de vista legal, que o que está sendo aprovado seriam “Operações Urbanas Consorciadas”, quando, no exame factual e descritivo das operações, o que se prevê são apenas transferências de direitos de construir, dos lotes do Vasco e dos proprietários da área do Autódromo, para outras áreas da Cidade, com aumento, indiscriminado, nestas áreas receptoras, de seus coeficientes máximos de edificabilidade[3].
Isto se constata, com facilidade, nos projetos de lei do Vasco e do Autódromo, já que seus textos, ou em seus encaminhamentos, não têm nenhuma das características e/ou exigências de uma Operação Urbana[4], conforme previsto nos arts. 32 e seguintes do Estatuto da Cidade, e nem das previsões e exigências dos arts.187 e seguintes do novo Plano Diretor do Rio (LC nº 270/270), a começar pela completa ausência do Projeto Urbano no perímetro a ser reestruturado, seja para as áreas de transferência, seja para as áreas receptoras, principalmente!
Ou seja, usar, nos projetos de lei em questão, a denominação de Operação Urbana Consorciada para mascarar simples operações de transferências de direitos construtivos, é como dispor de uma lei para fraudar outras leis superiores[5]: o Plano Diretor da Cidade e o Estatuto da Cidade, o que é inadmissível em Direito e, portanto, ilegal e inapto a produzir qualquer efeito jurídico, conforme estipula o art.24 §4º da Constituição Federal.
Marcado pelos velhos e perversos hábitos urbanísticos, os projetos de lei do Vasco e do Autódromo, ao pretenderem modificar, aumentando os coeficientes construtivos máximos previstos no Plano Diretor em várias zonas da Cidade, transformam, desta forma, os índices urbanísticos públicos em moeda municipal, provocando uma verdadeira derrama urbanística na Cidade.
Tudo aparentemente novo, mas operando para que tudo continue como antes – sem estudo, sem controle, sem legalidade e sem legitimidade. É o mesmo velho Rio, terra da “beleza e do caos”.
[1] Disponível em : http://urbecarioca.com.br/vendo-o-rio-urbanismo-mercado-imobiliario-e-gabaritos-o-caso-do-vasco/
[2] O RE 607940 aprovou tese de repercussão geral no sentido que os municípios podem aprovar “programas e projetos específicos de ordenamento territorial por meio de leis que sejam compatíveis com as diretrizes fixadas no plano diretor” (grifos nossos)
[3] Veja a descrição técnica no referido blog UrbeCarioca, link
[4] Como por exemplo, o Estudo de Impacto de Vizinhança, ou a criação de um fundo contábil
[5] Fraude à lei, e na lei, é uma categoria jurídica que, em linguagem simples significa: “Quando o ato vai contra as palavras e o espírito da lei, é ele contra legem, contrário à lei, em que há a violação direta da lei. Já quando o ato preserva a letra da lei, mas ofende o espírito dela, o ato é de fraude à lei” (in Google, https://l1nk.dev/67isn)