Urbanismo Brasileiro ainda sem Diretrizes Normativas
Recentemente, uma famigerada Resolução do CONTRAN (726/2018 pretendeu estabelecer regras específicas para a renovação da autorização de condução (carteira de motorista) de todo Brasil. A resolução, talvez bem intencionada, era burocraticamente absurda, e ocasionou reações imediatas. Dentre estas, destacam-se a de alguns deputados que acenaram com a possibilidade de usarem sua prerrogativa de controle e sustação de atos normativos expedidos pelo Executivo que extravasem a competência legal (Constituição Federal, art. 49, V*). Imediatamente, a dita Resolução foi revogada pelo próprio CONTRAN.
O que nos chama a atenção é que, no Brasil, vários órgãos e conselhos da Administração Pública Federal, como o CONTRAN, têm esta competência normativa de detalhar as diretrizes contidas em leis e que exigem regulamentação mais elaborada e atualizada por normas técnicas. Podemos citar vários órgãos federais que têm este poder normatizador; dentre eles exemplificamos: o CONAMA (Conselho Nacional de Meio Ambiente), o CMN (Conselho Monetário Nacional), a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e o próprio CONTRAN. Ou seja, o poder normativo da administração pública, no exercício da regulamentação técnica das leis, é vastamente praticado no Brasil, com grande eficácia e em áreas econômicas muitíssimo sensíveis, como no caso da CMN, do CADE ou da CVM.
O que é surpreendente é que na área do Urbanismo, especificamente na área do planejamento urbano e da ordenação do território, onde a União passou a ter competência legislativa explícita desde 1988, pelo art. 24, I da Constituição Federal, e para, pelo Executivo, “elaborar e executar planos nacionais e reginais de ordenação do território (…)”, bem como “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, (…)” (art.21, IX e XX), não tenha sido atribuída ao Ministério das Cidades, nem ao seu Conselho, poderes para normatizar as importantíssimas leis federais sobre a matéria.
“Diretrizes gerais” – Esta lacuna se faz sentir especialmente após a vigência do Estatuto das Cidades (lei 10.257/2001), que em seu artigo 2º estabeleceu, genericamente, as “diretrizes gerais” da política urbana, mas não decodificou o sentido que se pode dar a elas. Basta ver a redação de algumas delas para saber o quão necessário seria que um órgão federal estabelecesse o entendimento do que significa, por exemplo:
No inciso IV: “planejamento (…) da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente“, ou
no inciso V: “oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses da população e às características locais” (inc.V, art.2º).
Ou ainda no inciso VI “ordenação e controle do uso do solo, de modo a evitar: a) utilização inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; c) parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura urbana; d) instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como polos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização;” (… grifos nossos)
no inciso IX – “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização”;
no inciso XI – “recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização dos imóveis urbanos”;
A falta de normativa que explique como aplicar estas diretrizes, dando-lhes efetividade, resulta em que elas sejam ou mal aplicadas, não aplicadas ou até aplicadas em sentido inverso. Um exemplo bem prático é o caso da “Resolução Recomendada n.148” do Conselho das Cidades, que para dar efetividade à diretriz contida no inc.IX, do art.2º (“justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização”) e de seu respectivo instrumento urbanístico, a Outorga Onerosa do Direito de Construir (art.28), dispôs sobre como os Municípios deveriam interpretar e aplicar este dispositivo do Estatuto da Cidade.
Mero aconselhamento – Porém, ao contrário do que acontece com as Resoluções do CONAMA que têm força cogente, a normativa do Conselho das Cidades (ConCidades) fica reduzida a um mero aconselhamento aos Municípios. Nem mesmo há, pelo Ministério das Cidades, um condicionamento da distribuição de seus recursos à observância de suas recomendações!
Como as diretrizes do Estatuto da Cidade são (como não poderiam deixar de ser) genéricas, falta complementá-las por normativas técnicas e procedimentais, para que elas sejam eficazes, e que se lhes permita o exercício de um controle de legalidade.
E que é controle de legalidade?
É de se supor que as as legislações de planejamento urbano dos Estados e dos Municípios não poderiam conter dispositivos que contrariassem, na prática, os dispositivos contidos no artigo 2ª do Estatuto da Cidade, como por exemplo, não fizessem a justa distribuição de ônus e benefícios do processo de urbanização, ou não se recuperassem os investimentos feitos pelo poder público que tivessem sido apropriados, gratuitamente, pelos proprietários privados.
Mas, se um determinado Município continua sem incluir, em seu planejamento, um índice básico genérico e continua dando índices urbanísticos gratuitos para uns e restringindo índices para outros, ou seja, fazendo uma inequitativa distribuição de benefícios e ônus no planejamento, como no caso do Município do Rio de Janeiro, o que acontece?
Nada. A diretriz do Estatuto não é aplicada e nada acontece.Nenhuma forma legal de controle social está claramente disponível para ser juridicamente acionada, porque as “recomendações” do Conselho das Cidades não têm força normativa secundária, como têm as resoluções do CONTRAN, do CONAMA, e do CMN, entre outros.
São as diretrizes para o planejamento das cidades menos importantes do que as diretrizes técnicas das normas de trânsito? Ou de meio ambiente?
O único caminho ainda aberto é o controle difuso da aplicação eficaz das diretrizes do Estatuto da Cidade a ser feito pelo Judiciário, pois não se pode supor que esta lei exista, e sua aplicação ficaria, na prática, ao alvedrio do entendimento, ou não aplicação, que lhe dará, ou não, cada prefeito ou cada uma das Câmaras municipais dos mais de cinco mil municípios brasileiros.
Portanto, urge dar ao Conselho Nacional de Cidades poder normativo que viabilize a eficácia ao comando constitucional contido no art.21, XX da Constituição Federal, e que lhe permita instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, e lhe permita decodificar aquelas do Estatuto da Cidade. Só assim poder-se-á falar em controle social e até judicial das leis nacionais sobre as Políticas Urbanas, que ainda patinam no limbo da ineficácia, e, que resultam em cidades com os mesmos problemas de sempre nas áreas de habitação, serviços públicos, e ambiente social e ambientalmente insustentáveis.
“art. 49, V: É da competência exclusiva do Congresso Nacional: (…)
V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou os limites de delegação legislativa”